DISTINÇÃO I (LIVRO II)

TEXTO DE PEDRO LOMBARDO

CAPÍTULO I

Tratamos, embora apenas em parte e da melhor forma que podemos com o que acreditamos estar relacionado ao mistério da Trindade e Unidade Divina. Passemos agora para o estudo das criaturas.

Mostra-se que existe apenas um princípio e não muitos, como alguns acreditaram: A Escritura, ao tratar da criação das coisas, anuncia que Deus é o Criador de todas as criaturas visíveis e invisíveis desde o início dos tempos, afirmando: “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Com estas palavras Moisés, inspirado pelo Espírito de Deus, afirma que o mundo foi criado por Deus em um único princípio, rejeitando o erro daqueles que afirmavam que há alguns princípios eternos.

Platão afirmou três princípios – De fato, Platão (Timeo, 48 ss.) afirma que haviam três princípios, a saber, Deus, o exemplar e a matéria, todos estes eternos e incriados, e que Deus agiu como um artífice, e não como um criador.

CAPÍTULO II

Por qual razão é chamado propriamente de criador, e o que é criar e o que é fazer: Criador é aquele que faz algo do nada, e criar é propriamente fazer algo do nada; contudo, “fazer” não é tomando como obrar a partir do nada, mas sim através da matéria: daí que se diz que o homem ou o anjo “fazem” algo, e por isso são chamados artífices ou produtores, mas não criadores, pois este nome pertence apenas a Deus, que faz coisas do nada, faz algo de algumas coisas, e é criador, autor e artífice. Ele reservou o nome próprio “Criador” apenas para si mesmo, e os outros comunicou às criaturas. Por vezes na Escritura o nome de criador é usado como o de artífice e, criar é também usado como fazer, sem distinção.

CAPÍTULO III

As palavras “fazer” e “obrar” não são distintas da mesma maneira em Deus: É de se notar que as palavras “criar”, “fazer”, “obrar“ e similares não podem ser ditas em Deus da mesma maneira que são ditas nas criaturas. Porque quando dizemos que Ele faz algo, não se deve entender que Ele se move ao agir, ou que Ele sofre alguma paixão ao obrar, mas que implicamos algum novo efeito da Sua vontade divina, ou seja, que por Sua vontade eterna, algo novo passa a existir.

Em que sentido se diz que Deus faz algo: quando se diz que Ele faz algo, quer-se dizer quede acordo com a Sua vontade, ou pela Sua vontade, algo venha a existir sem que nada de novo ocorra Nele, de modo que o novo seja feito conforme a vontade Divina, sem qualquer mutação ou mudança. Nós, porém, mudamos à medida que agimos, porque nos movemos e nada fazemos sem movimento. No entanto, se diz que Deus age ou faz algo porque Ele é a causa das coisas que passam a existir; uma vez que coisas novas, que não existiam antes, começam a existir pela Sua vontade, sem movimento n’Ele, de modo que não se pode falar propriamente de “ato”, pois o ato consiste em movimento, e em Deus não há nenhum movimento.

Isto é demonstrado por uma semelhança: assim como pelo calor do Sol as coisas passam a existir sem qualquer movimento ou mutação nele, do mesmo modo, pela vontade de Deus, as coisas novas são feitas sem que haja qualquer mudança ou alteração no autor, que é o único e eterno princípio de todas as coisas.

Aristóteles aponta para três princípios: No entanto, Aristóteles (De gen., II, texto 51-52) disse que havia dois princípios, a saber, matéria, espécie, e um terceiro chamado operativo, e afirmou que o mundo existe e sempre existiu.

O ensino da doutrina Católica: O Espírito Santo, anulando o erro destes e outros semelhantes, e mostrando a disciplina da verdade, revela que “Deus criou o mundo no início dos tempos, e que Ele existiu eternamente antes do tempo, afirmando a sua eternidade e omnipotência” (Beda, In Gen., I, 1), pois como dissemos (I d45 e um pouco antes), Ele desejou fazê-lo; porque pela sua bondade e pela sua vontade coisas novas passam a existir.

Santo Agostinho no Enchiridion: Cremos, pois, que “a causa das coisas criadas, celestes e terrestres, visíveis e invisíveis, não é outra senão a bondade do Criador, que é o único Deus verdadeiro” (Santo Agostinho, Enchir., 9) que tem uma bondade tão grande que, como o bem supremo e eterno, quis tornar outros participantes da Sua bondade, com a qual Ele é completamente abençoado, tendo visto que pode ser comunicado sem ser diminuído de forma alguma. Ele quis comunicar aos outros que Ele era aquele bem com o qual foi abençoado, apenas pela Sua bondade e não por necessidade, porque é próprio do bem supremo desejar beneficiar e é próprio do Todo-Poderoso não receber o mal.

Por isso a criatura racional foi criada: E porque ninguém pode participar da sua bem-aventurança a não ser pela inteligência (que, quanto mais é exercida, mais plenamente é possuída), Deus fez a criatura racional para que compreendesse o bem supremo, e lhe compreendendo, o amasse, e lhe amando, o possuísse, e lhe possuindo pudesse desfrutá-lo.

De que forma a criatura racional é distinta: Ele a distinguiu de tal forma que uma parte dela permaneceu em sua pureza e não se uniu a um corpo, a saber, os anjos; e a outra parte se uniu a um corpo, a saber, as almas. Portanto, a criatura racional distingue-se em corpórea e incorpórea; a incorpórea é chamada anjo, e a corpórea é chamado homem, cuja subsiste pela alma racional e pela carne. A causa primeira da criatura racional foi a bondade de Deus.

Porque é que o homem e o anjo foram criados: Por isso, se perguntarmos porque é que o homem e o anjo foram criados, simplesmente responderemos: pela bondade de Deus. Assim diz Agostinho: “Porque Deus é bom, nós existimos, e na medida em que existimos, nós somos bons” (De Doct. Christians, I, 32, 35).

CAPÍTULO IV

Para que foi criada a criatura racional: Quando se pergunta para que foi criada a criatura racional, a resposta é: para louvar a Deus, para o servir, e para o desfrutar. Com estas coisas a criatura lucra, mas não Deus. Pois Deus é perfeito e portador da maior bondade, e não pode aumentar ou diminuir. E o fato de a criatura racional ter sido feita por Deus deve ser referido à bondade do Criador e à utilidade da criatura.

Uma resposta muito breve à pergunta do porquê ou para que fim foi feita a criatura racional: Quando se pergunta o porquê ou para que fim foi feita a criatura racional, pode ser dada uma resposta muito breve: para a bondade de Deus e para o benefício da criatura. De fato, é útil à criatura servir a Deus e desfrutar d’Ele. Quando dizemos que o homem ou o anjo foi feito por Deus, não é porque Deus, o Criador, que é o mais abençoado e não tem necessidade das nossas coisas, (cf. Sl 15,2), teve necessidade de nosso serviço, senão para que o pudesse servir e gozar dele; servi-lo é reinar, pois este beneficia aquele que serve, e não aquele que é servido.

Como o homem foi feito para servir a Deus, assim o mundo foi feito para servir o homem: e assim como o homem foi feito para Deus, isto é, para servi-lo, da mesma forma, o mundo foi feito para o homem, ou seja, para servi-lo. Assim o homem foi posto para que pudesse servir e ser servido, de modo que tudo redunde para seu bem; tanto a obediência que recebe, como a que estende. Assim, Deus quis ser servido pelo homem de tal modo que este serviço daria vantagens ao homem e não a Deus, e Ele quis que o mundo o servisse para que pudesse se beneficiar dele.

De que forma todas as coisas são nossas – Tudo foi bom para o homem: tanto o que foi feito para ele, como a razão pela qual ele foi feito. O Apóstolo diz: “Todas as coisas são nossas” (1 Cor 3, 22), ou seja, coisas superiores, iguais e inferiores: as superiores são nossas para desfrutá-las (como a Trindade); as iguais para viver; pois embora agora sejam superiores a nós, no futuro serão iguais a nós; e mesmo agora são nossas, pois as coisas dos senhores são ditas como “servas”, não por domínio, mas porque são para seu uso. Em alguns lugares da Escritura se diz que os próprios anjos são nossos, quando são enviados ao seu serviço para nosso bem (cf. Heb., 1, 14). E como as coisas superiores e iguais são nossas, as coisas inferiores também são nossas, porque são feitas para nos servirem.

CAPÍTULO V

Em que sentido se afirma nas Escrituras que o homem foi feito para reparar a queda dos anjos: Por vezes afirma-se nas Escrituras que o homem foi feito para reparar a queda dos anjos; mas isto não deve ser compreendido no sentido de que o homem não teria sido feito se o anjo não tivesse pecado, mas que esta foi uma das principais causas.

CAPÍTULO VI

Porque o homem foi constituído de tal modo que a alma está unida ao corpo: pergunta-se frequentemente porque é que a alma, tendo maior dignidade sem um corpo, está unida ao corpo.

A primeira causa: A primeira coisa a ser respondida é que Deus assim o quis, e nenhuma causa pode ser procurada a partir da sua vontade (ver Livro I d45).

Segunda: Pode-se acrescentar que Deus quis que a alma se unisse ao corpo na condição humana, para que se mostrasse um novo exemplo da união que existe entre Deus e o espírito: nessa união ama-se “de todo o coração” e vê-se “face a face” (Mt., 22, 37; I Cor., 13, 12). Pois poderia a criatura acreditar que se uniria ao seu Criador tão intimamente de modo a conhecê-lo e amá-lo com toda a sua alma, se não visse o espírito, que é uma criatura tão excelente, unido a uma criatura tão humilde que é carne; e unido com tal amor que não se resignaria a abandoná-la; como diz o Apóstolo: “Não queremos ser despojados do corpo, mas sim ser revestidos” (2 Cor.., 5, 4), pelo qual se mostra que o espírito criado está unido ao Espírito não criado com um amor inefável.

Como exemplo da futura comunhão que deveria ser alcançada entre Deus e o espírito racional em sua glorificação, Deus uniu a alma às vestes corpóreas e às mansões terrestres; e fez com que o barro ganhasse vida, para que o homem pudesse compreender que uma vez que Deus pode unir uma natureza tão díspar como corpo e alma, não seria impossível para Ele elevar a humildade da criatura racional – embora muito inferior – à participação da sua glória. Pois como o espírito racional foi humilhado ao unir-se ao corpo terreno, a providência de Deus acrescentou que depois, com o corpo já glorificado, deveria ser elevado à união com aqueles que tinham permanecido em sua pureza, para que aquilo que lhe tinha sido retirado em sua criação, fosse posteriormente recebido em sua glorificação pela graça de seu Criador.

Assim o nosso Criador, dispondo os espíritos racionais segundo a Sua vontade, determinou que aqueles que Ele tinha deixado em sua pureza primitiva teriam um lugar no céu; mas para aqueles que Ele uniu aos corpos terrenos, deu um lugar na terra, impondo uma regra de obediência a ambos, a saber, que alguns não deveriam cair de onde estavam, e que outros deveriam subir de onde estavam para onde não estavam. Deus também fez o homem com uma substância dupla: formando o corpo a partir da terra e fazendo a alma a partir do nada.

Terceira: As almas foram unidas aos corpos para que lhes servindo, pudessem merecer uma coroa maior.

Após o mistério da Trindade, três tipos de criaturas devem ser tratados. Em primeiro lugar a mais digna, isto é, a Angélica. – Do que foi dito acima parece que a criatura racional foi dividida em angélica e humana, sendo uma totalmente espiritual, ou seja, a angélica; e a outra, com uma parte corpórea e uma parte espiritual, ou seja, o homem. Uma vez que é necessário lidar com elas, a saber, com a criatura espiritual e a corpórea, e com a racional e a não-racional, devemos primeiro lidar com a racional e espiritual, ou seja, com os anjos, para que, seguindo o Criador, a nossa razão possa vir a conhecer a criatura mais digna, e depois descer para considerar a criatura corpórea, tanto a racional como a não racional, para que o conhecimento da Trindade não criada seja seguido pelo ensino de três tipos de criaturas e coisas relacionadas e ligadas a elas.

Tradução: Geovane Campanher

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