1 – A Ordem das Disciplinas e a História da Humanidade 

1.i. – Como o homem conhece? 

O homem conhece passando do todo às partes, e das partes de volta ao todo. Primeiro se pensa confusamente um universal, por exemplo, animal. Depois, ainda confusamente, conhece-se que animal tem partes subjetivas (a vaca, o homem, o cavalo). Depois, analisam-se (ou seja, distinguem-se) essas partes. Por fim, sintetizam-se essas partes outra vez no todo.

Se pensarmos num análogo geométrico, poderíamos pensar em um retângulo que pode ser dividido em outras formas geométricas. Mas antes de sabermos que ele pode ser dividido, devemos reconhecer sua forma total, sem reconhecimento de suas partes: é o que chamamos de conhecimento confuso atual, o primeiro conhecimento que temos de algo. A partir do conhecimento confuso atual, como seu nome indica, há um conhecimento incerto e indistinto da coisa que se faz atualmente presente à inteligência, p. ex., do retângulo enquanto é este retângulo. Segue-se deste conhecimento o seu oposto: o conhecimento distinto atual, ou seja, agora sabendo atualmente a natureza daquilo que se apresenta ao intelecto, p. ex., encontrando a definição matemática de retângulo. Porém, a partir da definição de algo surgem possibilidades acerca de formas de divisão do todo em partes, e este conhecimento é o que chamamos de confuso virtual, porque há um conhecimento confuso de partes que estão virtualmente, potencialmente presentes à inteligência, e. g., a possibilidade de, por meio da definição de um retângulo, dividi-lo em dois quadrados, e estes quadrados em quatro quadrados menores, etc. Por fim e em último estágio do conhecimento, capturamos todas essas partes conhecidas e sintetizamos novamente no todo, isto é, no retângulo, não mais isoladamente, descolada da totalidade de sua existência. 

Assim, grafemos os exemplos dados: 

[…] Em primeiro lugar entra o conhecimento [confuso atual] pelo que se conhece a “substância” em si mesma, mas não penetrando-a, e o conhecimento pelo que se conhece “corpo” enquanto corpo, e enquanto corpo animado, e o animal como animal e o homem como homem; sempre sem penetração, ou seja, sem ter uma razão formal clara e resoluta. Então, temos os conhecimentos opostos aos citados, a saber, os [distintos atuais] que conhecem quiditativamente o que é a substância, o corpo, o animal e o homem enquanto tais. Logo estão os conhecimentos [confusos virtuais] em que são conhecidas a substância, o corpo, o corpo animal e o animal, sem compô-los com suas partes [subjetivas] inferiores. Em quarto lugar, estão os conhecimentos opostos a estes, a saber, nos que substância se compõe com conhecimento perfeito com seus inferiores, a saber, qual se compõe um todo universal com suas partes [subjetivas] e similarmente o que o corpo com suas partes subordinadas se penetra, e assim pelos demais.

1.i.a – Os hábitos intelectivos

Mas o homem tem, para garantir ainda mais a perfeição de seu conhecimento, os hábitos intelectivos: os primeiros princípios, a arte e a ciência. Quando ele tem a todos com perfeição, atinge o hábito intelectivo da Sabedoria. 

1.i.b. – O ηábito dos primeiros princípios

São vários os primeiros princípios: um primeiro princípio é tudo aquilo que o homem apreende quase intuitivamente e que não pode negar sem incorrer em grave absurdidade e contradição. É algo cuja negação nega a própria negação. Um exemplo simples: é fato, evidente e necessário, de que agora eu penso, porque se não estivesse pensando, não estaria aqui, incorrendo em absurdo. 

O primeiro dos primeiros princípios é o conhecimento do ente (i.e., do ser), que chamamos pelo nome de princípio da não contradição: 

“Tese 1: alguma coisa há, e o nada absoluto não há

“Tese 2: o nada absoluto, por ser impossível, nada pode”

O ente, ou o ser, é tudo aquilo que há, que existe, que é. O não-ser, o nada, o impossível, é seu contrário, tudo aquilo que não há, que não existe, que não é. Todo conhecimento é baseado, em última instância, no conhecimento de que algo há e o nada não há. No descortinar primeiro da consciência, a primeira coisa que se nos aparece não é nossa mãe, não é nosso choro, não é nada disso: mas é, desde o ventre, o ser, o algo, o dado da realidade que não temos força alguma diante dele, senão tão somente aceita-lo. É a irrevogabilidade da realidade, do ser, diante da nossa mesquinha vontade. 

Chamamos de princípio da não-contradição porque, o que é, não pode não ser aquilo que é. Se eu sou eu, não posso não ser eu. Sou eu, e fim de papo. A é A e não é B. É o princípio primeiro de todo raciocínio humano, e qualquer outro basear-se-á nele. Mesmo se tentarmos refutar este princípio, só o “refutaremos” usando dele mesmo: afirmando que o princípio não existe, e que, portanto, não pode existir, é dizer que o princípio é algo e não pode ser outro que este algo. 

Mas o ser, o ente, é riquíssimo: se o ente ou o ser é tudo aquilo que é, que existe, quer dizer que o conceito de ente ou ser engloba qualquer outra coisa existente. Qualquer coisa que possa recair sobre nossa mente é, isto é, é ente. Ou seja, o primeiro conhecimento confuso atual é o do ente. E todo outro conhecimento posterior serão desdobramentos da ideia de ente, de ser. 

Mas o ente, a realidade, o ser, é tão rico, o homem precisa criar outros dispositivos mentais além dos primeiros princípios para conhecer essa tão vasta riqueza. Os primeiros princípios conhecem coisas evidentes, primeiras. Embora eles sejam importantíssimos, eles são, contudo, apenas a base de todo o trajeto do conhecimento humano. Para tanto, o homem cria artes e ciências, que, cada um ao seu modo, tornam mais profundo o que se conhece genericamente por um princípio primitivo. 

1.i.c. – O ηábito artístico

O primeiro passo que o homem dá para o aprofundamento de seu conhecimento do ente são as artes. As artes são dispositivos mentais, isto é, hábitos intelectuais que querem produzir algo, seja interno ao seu usuário ou externo a ele. A marcenaria, a joalheria e a engenharia são artes. Mas também é arte a lógica, a gramática, a linguagem e a retórica, porque todas essas coisas produzem outras, mesmo que o produto seja interno ao próprio usuário. As artes, portanto, tem por objeto o aperfeiçoamento instrumental do homem: seja usando como instrumento seu próprio corpo, outras coisas ou até seu próprio espírito e pensamento. 

A educação na idade média tinha ciência disso tudo. E a pedagogia medieval deu o nome de Trivium às artes primarias do conhecimento humano. 

Mas foquemo-nos, em alguns instantes, para dizer que isso não é só o currículo das escolas primárias medievais, senão que é, de algum modo, a própria história da humanidade. 

Todo ser humano da história já teve contato com os primeiros princípios, ao menos implicitamente, porque, como já vimos, eles são dados inescapáveis que todo ser humano é obrigado a aceitar se não quiser ofender sua propria razão, e se há alguém que os negue, só o fazem da boca pra fora, sem refletirem que sua mesma negação é sua afirmação. 

1.i.c.α. – A arte da linguagem

Mas homens não moram em ilhas e, diferentemente dos animais, não somos armados com nenhuma capacidade natural de sinalizar todas nossas possibilidades da consciência interna. Os animais não precisam de linguagem porque o número de possibilidades internas, em sua consciência, é mínima: não são capazes de muito. Mas nós, porque temos acesso às essências do ser e sua riqueza, cada vez descobrimos facetas cada vez maiores do ser, e, por isso mesmo, precisamos de formas mais complexas de nos comunicar com ninguém. Razão porque criamos a arte da Linguagem: para comunicar nossos pensamentos aqui e agora. 

Isso já mostra a importância mas também a debilidade da Linguagem. É importante porque é o primeiro grande mecanismo de pensamento e de tomada de consciência do homem. Com a linguagem, ele como que usa coisas externas a ele, como os sons, como veículos de pensamentos, e, de alguma forma, dando uma objetividade maior a eles, mais seguros e confiáveis. Em contrário, o instrumento da linguagem são os sons proferidos aqui e agora por alguém de carne e osso: isso coloca a linguagem sobre barreiras tão mesquinhas que ela é, ao mesmo tempo que um maravilhoso instrumento, ainda um limite para as possibilidades de nosso tão grandioso e aspirante espírito. 

1.i.c.β. – A arte da gramática

Pra nós não basta o aqui e agora: não basta a mim transmitir o que sei acerca do ser, do ente, a alguém que está próximo de mim: preciso transmitir a outros, outros que posso nunca ter contato. Eis que surge a escrita, a arte de transmitir pensamentos para pessoas longe ou no tempo ou no espaço. 

A própria fala, para além de seu fim significativo e comunicativo, tem já uma segunda finalidade: como todo e qualquer homem, por uma série de motivos complexos, tem dificuldade para permanecer em contemplação intelectual sem se deixar distrair pela multidão de apelos sensíveis, a palavra vocal serve de apoio ou sustentação material para o pensament0. Para precisar uma ideia ou proposição, para dar-lhes mais rigor, é conveniente dizê-las, expressá-las oralmente. Mas tampouco isto é bastante, porque também a palavra vocal tem muito de fugaz, e por isso, para que alguém fixe para si mesmo uma ideia ou uma proposição e para que siga um raciocínio sem solução de continuidade, convém escrevê-los. A escrita, com efeito, é como que a memória da língua, e faz que ela se beneficie grandemente de fixidez e de economia de esforços, além de permitir-lhe os mais finos aprimoramentos.

Como já vimos, “a escrita não é uma simples opção que se oferece ao homem, mas efetiva necessidade sua”, porque “a escrita é a parte das línguas que de si mais capacidade tem não só de conservar-se, mas de conservá-las. É fato evidentíssimo que, por exemplo, o grego ática de um Platão ou um latim romano de Cícero não nos teriam chegado se não fosse a escrita; assim como também é fato evidente que não é senão em razão da escrita que podemos dizer, com toda propriedade, que o português do Brasil e o de certas regiões dos demais países lusófonos são a mesma língua”. Os gramáticos selecionam um corpus de melhores escritores de toda a história da língua, estes melhores escritores representam uma média de paradigmas que é universal e fechado a todos eles. Nesse sentido, embora tenhamos quatro séculos de distância entre Camões e nós, o fato é que, ao vermos o que é usado entre os melhores escritores de nossa época, fechando os paradigmas que são universais a todos eles, podemos retroativamente pescar esses mesmos paradigmas em Camões, que não mudaram em nada (muito embora o português do século XVI fosse completamente diferente do português atual). Isto é possível justamente porque os bons escritores seguem, universalmente, padrões universalmente estabelecidos. Camões, Machado de Assis e Jorge de Lima, embora distantes entre si no tempo e no espaço, seguem eles as mesmas regras da escrita, justamente porque são bons escritores.

Mas outro motivo, como já dito, é a mudança que se apresenta à arte da Linguagem: ora, se a lingua sempre mudar, logo haverá ninguém que se entenda, algo como um rio heraclitiano, onde um homem não pode se banhar duas vezes num mesmo rio, porque as águas que uma vez se banhou já passara, e agora se banha em outras águas; assim também um homem não poderia nunca falar duas vezes a mesma língua. 

Dir-nos-ão: a língua muda, isso é normal! De fato, a língua muda, mas mudará ou para o pior ou para o melhor. Mas todo movimento tem uma direção, um sentido, do contrário, não haveria movimento algum, porque o movimento é sair de um estado ou lugar para ir a outro. Esse estado ou lugar último, no entanto, terá de ser ou melhor ou pior para o objeto movido, porque mudanças de estado ou lugar trazem mudanças qualitativas (se eu me mudo para São Paulo, o faria porque isso me traria uma boa consequência, mas se, porém, sou obrigado a me mudar para áreas marginalizadas, isso seria para mim algo ruim). Igualmente, se a finalidade da língua é transmitir ideias segundo o tempo e o espaço de forma clara, com ordem e com facilidade, segue-se que as mudanças devem ser tomadas em relação à satisfação ou não desse fim: pode-se afastar ou se alinhar a ele. 

E tanto é assim, que muitas línguas desapareceram, porque alguma outra língua se sobrepujou a ela, mas só se sobrepuja o que tem mais força, logo, a conclusão é patente.   

Arte pode definir-se duplamente: ou em sentido estrito, como “recta ratio factibilium” (a reta razão das coisas factíveis), ou, em sentido mais lato, como “uma ordenação certa da razão pela qual os atos humanos alcançam por determinados meios o fim devido”. Sendo assim, entendida em sentido estrito, só é arte aquela razão mediante a qual se faz uma coisa ou se usa algum instrumento. Entendida, no entanto, em sentido amplo, pode dizer-se arte não só aquela mediante a qual se faz uma coisa ou se usa um instrumento, mas também aquelas que ordenam as outras duas ordens de atos humanos (a dos atos apetititvos e a dos intelectivos) – e neste sentido tanto a Prudência como a Lógica, a Gramática, etc., são artes.

E isto é principalmente porque a língua é sempre artificial. Ora, não nascemos com ela, senão que a aprendemos, assim como não nascemos aprendendo a usar qualquer artefato (arte-factum, feito com arte), como uma simples colher. Mas instrumentos tem, claramente, fins, porque instrumentos só o são em razão de alguma finalidade imposta pelos homens (um certo conjunto de metal, plástico ou madeira só pode ser considerado uma cadeira em razão da finalidade que lhe é imposta pelos homens), portanto, todo instrumento pode ser avaliado como bom ou ruim na medida que satisfaz seu fim (ou por acaso nunca falamos que tal cadeira é ruim por causa do desconforto ou da dor nas costas?). Mas a língua é um artefato, logo, a língua será ou boa ou ruim a depender de sua consecução na finalidade da linguagem. 

[as línguas] corrompem-se mais aceleradamente quando, entre fiapos de civilização há apenas as regras intrínsecas da linguagem: essa é a razão por que a línguas ágrafas tendiam e tendem incessantemente à desordem de seus próprios paradigmas e de seu quadro fonético. Menos impetuosamente quando, em meio a uma verdadeira civilização universal (ou tendente à universalidade), se tem a escrita como sua parte própria e especial, a Gramática. – Mais ainda, neste ultimo caso podem tender até a grande estabilidade: foi o que se deu com o latim ao tornar-se língua altamente normatizada e ordenada à Ciência e à Sabedoria.

[as línguas] progridem, por outro lado, mediante sobretudo a escrita e sua Gramática, já quando fecham um novo paradigma, já quando criam e incorporam a seu léxico palavras que expressem novas concepções da realidade. E tanto mais progredirão quanto mais cultivadas forem, ou seja, quanto mais se valerem delas e as aprimorarem verdadeiros mestres. Foi o caso, por exemplo, de Platão e Aristóteles, com respeito a grego antigo: não só lhe derem um conjunto de palavras novas para significar os mais profundos conceitos científicos, mas, pela necessidade mesma de fazer servir a língua à Filosofia, contribuíram ainda para o aprimoramento de seus paradigmas causais.

A Escrita abre-nos a um mundo novo: faz-nos como que eternos, eviternos. Agora podemos nós, os brasileiros, dizer-nos escritores de uma mesma língua que os portugueses, distantes no espaço (muito embora haja, se considerarmos tão somente a fala, a Linguagem, uma debilidade de entendimento entre um pescador de Santa Catarina e um português do Porto quanto há entre qualquer português e qualquer espanhol), mas também aos africanos e chineses que falam português. E mais: podemos dizer que escrevemos a mesma língua que Camões, distante no tempo, e que fundamos nosso uso, até hoje, em seus escritos. Mas também a escrita nos permite a criar raciocínios mais complexos, sem interrupções, podendo refletir mais sobre o que está sendo transliterado. A escrita também permite dar-nos um pause na linha de pensamento: podemos deixar algo escrito pela metade e depois voltarmos, algo muito difícil sem seu apoio. 

Tudo isso permitiu que as maiores obras do espírito humano fossem geradas, e que até hoje exercem influência sobre nós. 

1.i.c.γ. – As artes do belo

Já em um estágio mais evoluído da humanidade, com instituições já formadas, pensando em alguma universalidade (como o bem de uma nação ou de uma família, saíndo das barreiras tão miúdas daquilo que chamamos de indivíduo, de um ‘eu’), a humanidade pensa em formas de fazer eternizar seus ensinamentos, e, principalmente, os ensinamentos que são fundantes de toda uma sociedade, “nenhuma sociedade humana é tão primitiva que não tenha algum tipo de literatura”.

Há em verdade um caso intermédio, o da chamada “tradição oral-global”, ou seja, a fundada sobre a memorização de textos longos como a Bíblia, os Vedas, as epopeias finlandesas Kaleava, as epopeias homéricas, etc. Cf. especialmente os trabalhos do diretor do Institut de Mimepedagogie Yves Baupérin (como Rabbi Yeshoua de Nazareth: une Pedagogie de Style Global, t. I: Du texte écrit au Geste Global. Paris , Ed. Désiris, 2000, e Anthropologie du Geste Symbolique . Paris, l’Harmattan, 2002); e os de Marcel Jousse (como Étude de Psychologie Linguistique. Le Style Oral Rythmique et Mnemotechinique chez les verbo-moteurs. In: Revue Archive de Philosophie, vol. II, Cahier IV, Paris, Gabriel Beauchesne, Éditeur, 1925). – Parece-nos inegável, todavia, que tal efetiva e nobre tradição sempre foi para poucos, enquanto a escrita é para maior número, razão por que, conquanto defendendo a aquela tradição contra a escrita, Platão se viu obrigado a plasmar por escrito grande parte de seu pensamento, assim como os poemas homéricos acabaram por transcrever-se, e como o Novo Testamento foi imediatamente escrito.

Mas agora, no presente contexto, o mais importante na Bíblia é sua estrutura e forma total: o fato de ser uma narrativa contínua, começando na Criação, terminando no Juízo Final e, entre as duas pontas, atravessando e sondando a história inteira da humanidade, sob os nomes simbólicos de Adão e Israel.

Os gregos e os romanos, como os autores do Antigo Testamento, dispuseram seus mitos em uma sequência, começando com histórias de criação, da queda, do dilúvio, passando por reminiscências históricas e chegando enfim à história propriamente dita. E, à proporção que se inseriam na história propriamente dita. E, à proporção que se inseriram na história, se inseriram também nas formas literárias mais reconhecíveis e consolidadas. A mitologia clássica produziu Homero e os dramaturgos gregos; as tradições ancestrais do Antigo Testamento desbocaram nos Salmos e no Livro de Jó.

As artes do belo podem definir-se genericamente do seguinte modo:

a arte significativa de plasmar formas mimético-significantes e belas sobre determinada matéria, para fazer, mediante indução de sentimento e purgação das emoções, que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom, e se afasta do falso e do mau.

  • Formas mimético-significantes

Uma forma mimético-significante é aquela que, por sua mesma figura, representa, ao contrário de uma palavra comum: não há nada na junção da letra u com a letra m que faça-nos representar intelectualmente o número 1, e tanto é assim que, se houvesse tal representação, todas as línguas seriam mais ou menos a mesma, porque haveria uma relação direta entre signo e significado. Pelo contrário, nas formas artísticas, no signo mesmo, há representação, por meio de uma imitação quantificacional, por exemplo:

As estruturas tonais a que chamamos música tem íntima semelhança lógica com as formas dos sentimentos humanos – formas de crescimento e atenuação, fluência e estagnação, conflito e decisão, rapirez, parada, violenta excitação, calma, ou ativação sutil e lapsos sonhadores

A arte do belo pode, então, significar de duplo modo: uma por significação e outro por mimetização. Tome-se o exemplo de um soneto de Camões:

As Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade.


Mas como causar pode seu favor. Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O que importa nesse soneto não é a descrição do amor, que é o significado por ele, mas o modo com que ele é descrito; a estrutura silábia; a rima; o modo com que o verso está constituído, etc. Semelhantemente é com todas as artes: uma pintura não é mera imagem de algo, mas suas formas geométricas, seu jogo de luz e sombra e tudo o mais deve, de algum modo, representar seu tema. Má pintura é aquela que é quase uma fotografia, ou seja, um mero espaço parado no tempo; e o inverso também é verdadeiro: a fotografia pode ser uma pintura se nela há como que uma poesia, há, nela, algo a ser significado pela composição espacial mesma, etc. 

O caso de uma fotografia que se reduz à arte pictórica é a de Steve McCurry (imagem 1)  e Henri Catier-Bresson (imagem 2). E como podemos facilmente notar isso? Porque não podemos descrever a fotografia simplesmente descrevendo o acontecimento fotografado. 

Figura 1

Figura 2

Tal mimése é uma mimése de paixões humanas e tipos de caráter da personalidade. E como se faz esta mimése? Pelas relações quatificacionais que podem se escopar em uma arte, porque toda arte se plasma em uma máteria, e toda matéria tem quantidade, portanto, toda arte contrai relações de quantidade. As relações de quantidade são, sobretudo, a relação de uma parte com o todo, ou das partes entre si, ou das diversas partes com o todo. Isso é possível porque também caracteres e paixões da alma possuem relações análogas às de parte e todo. Assim como podemos, na matemática, estudar a relação entre parte e todo por meio de uma fração (1/2 = 4/8, i.e., 1 está para 2 assim como 4 está para 8), assim também podemos fazê-lo na arte (a luz está para sombra assim como o bem está para o mal, etc.). 

  • Forma bela

O belo é algo presente em toda arte perfeita, e se uma arte não é bela, não pode dizer-se propriamente arte do belo. 

Ao belo é necessário tripla coisa: i) proporção, que é a relação de duas coisas segundo um princípio comum a ambos, que pode ser princípio ou de diferença ou de semelhança; ii) integridade, ou seja, não lhe falta nada para ser o que ela deve ser, e neste sentido uma casa não é integral se lhe faltar uma de suas partes integrais, como o teto, ou um filme em que falta uma cena que, sem ela, o filme perde alguma conexão ou sentido percebido pela inteligência; iii) claridade, que pode ser ou sensível ou inteligível. Será sensível pela cor e pela luz, ou pela sonoridade do som, ou pela definição dos contornos da figura tridimensional, etc., mas será intelectual se seu tema for inteligível, se for possível entender do que se trata, etc. 

  • Para fazer que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom

A arte não nos faz nos agarrarmos com certeza ao bom e ao verdadeiro, mas nos faz amarmo-nas. Uma ótimo canto gregoriano, unido à beleza da arquitetura católica, suas imagens e esculturas, não faz uma pessoa sequer crer em Deus nem nunca fez, mas com certeza ajudam-nas a amá-Lo. 

Das proposições prováveis, com efeito, procede o silogismo dialético, do qual trata Aristóteles no livro dos Tópicos. Às vezes, ao contrário, não se produz plenamente fé ou opinião, mas uma espécie de suspeita, porque a razão não se inclina totalmente para um dos membros da contradição, ainda que se incline mais par aum que para o outro. E a isto se ordena a Retórica. Outra vezes, todavia, só a extimatio [estimação, sentimento, pendor] se inclina para uma das partes da contradição por causa de alguma representação, à maneira como se produz no homem a repugnância de algum alimento, se se represento pelo aspecto de algo repugnante. E a isto se ordena a poética, porque é obra do poeta o induzir a um ato virtuoso por alguma representação decente [ou conveniente]. Tudo isso pertence à Filosofia Racional: com efeito, é da razão induzir de uma coisa à outra

Portanto, a arte do belo tem verdadeiro valor na criação do caráter e da civilização. “a língua da natureza humana, a mesma que torna tanto Shakespeare como Pushkin poetas autênticos e dá tanto a Lincoln como a Gandhi uma visão social”. A Linguagem dá bases ao pensamento, a Escrita faz-no universal, e a Literatura torna essa universalidade algo mais concreta. Sem a arte, não saberíamos como é a cultura da Grécia Antiga, nem de Roma, nem do Medievo, nem de nenhum outro lugar distante no tempo e no espaço. 

Mas mais: a [boa] arte, além de ser tendente à universalidade, é como uma imitação da eternidade por meio de ciclos. Já os mitos gregos representavam isso: eles falavam de algo que acontecera em um passado distante, de tempo desconhecido, mas que neles havia uma ‘moral’, um ‘significado’, que representava algo da estrutura da realidade e que tendia a se repetir. Assim, Rei Midas não é uma mera história de um passado, mas imagem de algo que tende a se repetir infinitamente e ciclicamente toda vez que algum homem de poder se torna ganancioso, e o mesmo com todas histórias trágicas da Grécia (como Prometeu, Dédalo, Narciso e tantos outros). 

Na experiência comum, achamo-nos todos na situação de um cão solto numa biblioteca, rodeados por um mundo de significado que se ergue diante dos nossos olhos e não enxergamos. […] No fim da série, Proust explica como uma tal experiêncie o transporta para fora da vida cotidiana e para fora do próprio tempo em que ele vive. É isto que lhe permite escrever o livro, na medida em que lhe possibilita olhar os homens não como experimentadores duma sucessão de momentos fugazes, mas como gigantes imersos no tempo.

  • Induzindo no homem um certo sentimento e purgando suas emoções

Como pode ao mesmo tempo induzir um sentimento mas purgar emoções? Não seria isto uma contradição?  

O sentimento de deleitabilidade é consequência de tudo que é [verdadeiramente] belo. Mas tal deleitabilidade é séria, isto é, não deleite por deleite, não é prazer por prazer, sentimento por sentimento: é um sentimento ordenado. Ordenado a quê? Já o veremos detidamente, mas diga-se, de antemão, que é ao bem e à verdade. 

Poder-se-ia perguntar-nos acerca da comédia teatral, cinematográfica ou literária, cujo fim é causar risadas. De fato, ela quer causar risadas, assim como a tragédia que causar o sofrimento interior, e o épico o fugor, e isso nada impede uma deleitabilidade série, ou seja, que tal sorriso ou qualquer sentimento outro é o meio pelo qual se propende ao bem. Já Aristóteles dizia que a comédia tem por fim imitar um caráter risível, para que seu consumidor, rindo deste caráter, queira, em sua vida pessoal, se afastar dele, porque seria rir de si próprio. 

Ademais, o belo também causa outro sentimento: o de raptância. A raptância é dupla: de interesse primário e, uma vez já interessado, arroubado, há a segunda raptância, que é a que leva ou transporta seu consumidor até um mundo de formas mimético-significantes e belas. Mas tal raptância é passageira, porque a arte tira seu consumidor da realidade para logo instaurá-lo na realidade novamente e com ainda mais amor a ela que antes, porque agora ele propende ao bem e à verdade que, repita-se, são coisas reais. 

Por fim, ele purga as emoções (i.e., é catártico) porque tira de nosso espírito os afetos que atrapalham a contemplação do bem e da verdade, das formas mimético-significantes e do tema principal da obra, deixando somente aquilo que nos é útil. 

1.i.c.δ. – Arte Retórica

A arte retórica surge em uma pólis já com seus sentimentos apontados ao bem e à verdade, razão porque surge o problema do bem comum, onde alguns cidadãos são mais capacitados para educar que outros; alguns são considerados mais sábios (provavelmente porque versaram mais largamente nos estágios anteriores de conhecimento, ou seja, melhor fala, melhor escreve e mais tem pendor ao bem e ao verdadeiro), e a eles recai o dever de ensinar outros. 

Mas logo que começamos o processo educativo, nos deparamos com uma série de problemas, sendo o principal deles o seguinte: como fazer o meu ensino agradável e, ao mesmo tempo, veraz? Como unir educação verdadeira com educação palatável? Eis então a retórica. 

Portanto, a retórica é a arte de fazer suspeitar a verdade, alcançando o verossímel, por meio da persuasão, de entimemas e de exemplos. 

Uma propriedade interessante da retórica é que ela faz desenvolver melhores quadros políticos e familiares nas sociedades em que ela é instaurada. 

1.i.c.ε. – Arte Dialética

Na dialética, perpassando o treinamento da personalidade (e da sociedade em que as personalidades treinadas estão), agora o homem pode elencar algumas opiniões mais importantes acerca dos temos que se quer ensinar. São os sábios, propriamente ditos. Mas entre os sábios, muitos discordam entre si, em níveis maiores ou menores.  Mas ambas opiniões, se são contrárias, não podem ser igualmente verdadeiras, razão porque devemos dar preferência a uma delas. Mas com base no instrumental intelectivo já criado por meio da gramática, da arte e da retórica, nós podemos alcançar, dentre as duas, a opinião mais provável, embora sempre tenhamos latente o medo dessa opinião, ainda que provável, ser falsa. 

A arte dialética é a arte de alcançar a opinião mais provável entre os sábios. 

1.i.c.ε. – Arte-ciência da Lógica

Agora, finalmente, o homem pode suspender o termo do erro, para finalmente se agarrar firme à Certeza, à Verdade e ao Bom. 

Antente-se, de antemã0, que dizemos que ela é uma ciência-arte. Eis o seu lugar especial entre as disciplinas. Ela é a única disciplina que é tanto arte como ciência. 

Deduzamo-lo: não se pode bem produzir nem ordenar a não ser que se conheça bem o que se ordena ou o que se produz. Mas, em todas as artes (ou quase todas, tirando a lógica, como logo se verá) os seus princípios docentes (i.e., o conhecimento da coisa produzida ou ordenada) não lhe são próprios, senão que são recebidos de ciências superiores (e.g., o engenheiro, artista, recebe conhecimentos do arquiteto, e o agricultor, artista, recebe influxos teóricos do agrônomo, cientista). Na lógica, no entanto, isto não ocorre e nem pode ocorrer. E isto por dupla premissa: i) a arte tem por fim o fazer ou o ordenar e a ciência tem por fim o conhecer a causa, mas ii) a lógica trata do modo de pensar do homem, e o pensar humano é, ele mesmo, universal. Sobre ambas premissas, só podemos concluir que, para conhecer as causas do pensar humano, é necessário ordená-lo; mas ordená-lo é o mesmo que conhecer suas causas. O homem não pensa sobre si mesmo sem ordenar a si mesmo; a lógica é, em certo sentido, a própria criação da consciência humana de modo consciente: é o ápice das artes propedêuticas da humanidade e da personalidade. É ápice das artes, mas, ela mesma, dá ensejo a outras coisas. 

Se a lógica pode, investigando a estrutura do conhecimento humano e ordenando-o, chegar à certeza, quer dizer que um novo tipo de atividade se abre ao homem, um terceiro tipo de hábito: a ciência. A lógica é a parteira da ciência.

1 Cardeal Caetano. Comentário ao Do Ente e da Essência de Santo Tomás de Aquino, p. 2-3. No prelo.  
2 Mário Ferreira dos Santos. Filosofia Concreta, p. 27. São Paulo: É Realizações, 2020. 
3 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 46.
4 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 45.
5 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 28.
6 Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 275.
7 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 25.
8 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 26.
9 Northtop Frye. A Imaginação Educada, p. 33. Campinas: Vide Editorial, 2017.
10 Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa, p. 25-26, nota 3. 
11 Northtop Frye. A Imaginação Educada, p. 69-70.
12 Northtop Frye. A Imaginação Educada, p. 99.
13 Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 194. 
14 Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 212.
15 Santo Tomás de Aquino apud Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 196.
16 Northtop Frye. A Imaginação Educada, p. 134.
17 Northtop Frye. A Imaginação Educada, p. 69-70.
18 Cf. Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 478.
19 Mas diga-se que no âmbito da arte cristã há certa inversão nisso.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *