Texto inédito em língua portuguesa, a Editora Contra Errores traz um excerto do Comentário de Santo Tomás de Aquino às Sentenças de Pedro Lombardo.

DISTINÇÃO III (LIVRO I)

TEXTO DE PEDRO LOMBARDO

CAPÍTULO I

Começa a mostrar como o criador pode ser conhecido através das criaturas: O Apóstolo em Rom., 1, 20 diz: “De fato, desde a criação do mundo, a realidade invisível de Deus – seu eterno poder e divindade – pode ser compreendido por meio do que foi criado”. Através da “criação do mundo”, o homem é conhecido “pela excelência com que se distingue entre outras criaturas ou pela harmonia que tem com cada criatura”. Assim, o homem foi capaz de enxergar “os atributos invisíveis de Deus” com o conhecimento da sua mente, e através das coisas criadas”, sejam estas visíveis ou invisíveis. De fato, o homem foi e é ajudado, tanto pela natureza, que é racional, como pelas obras feitas por Deus, para que assim a verdade possa se manifestar. Portanto, o Apóstolo em Rm 1,19 diz: “Deus se manifestou”, ou seja, através das obras que até certo ponto resplandecem um indício do artífice.

Primeira razão ou forma pela qual Deus poderia ser conhecido – como diz Santo Ambrósio: “Deus, que é invisível por natureza e conhecido a partir das coisas visíveis, fez uma obra que manifesta o artífice com clareza, para que através do certo, o incerto pudesse ser conhecido e pudesse se acreditar que Ele era o Deus de todas as coisas: aquele que fez aquilo que é impossível ao homem fazer”. Portanto, puderam saber ou souberam que, para além de cada criatura, há aquele que fez as coisas que nenhuma criatura pode fazer ou aniquilar. Que qualquer criatura apareça e faça um céu semelhante ou uma terra semelhante, e eu direi: é Deus. Ora, como nenhuma criatura é capaz de fazer tais coisas, é evidente que, acima de todas as criaturas, existe Aquele que as fez, e por isso Ele é Deus; e por este mesmo fato a mente humana tem sido capaz de saber que Ele é Deus.

A segunda razão pela qual Ele poderia ter sido conhecido, ou a forma como poderiam ter conhecido a verdade de Deus – ou mesmo tê-la conhecido, sob a orientação da razão. Como diz Santo Agostinho em De Civitate Dei (VIII, 6): “os grandes filósofos viram que Deus não era um corpo, e por isso passaram por cima de todos os corpos para procurar Deus. Observaram também que o que era mutável não era o Deus supremo, nem o princípio de todas as coisas; e por isso passaram por cima de cada alma e de cada espírito mutável. Depois viram que tudo o que é mutável só podia ser por Ele, que é imutável e simples. Compreenderam, portanto, não só que Ele tinha feito estas coisas, mas também que elas não poderiam ter sido feitas por nenhum outro.

Terceira razão ou modo: “Consideravam também que tudo o que está nas substâncias ou é corpo ou espírito; e que o espírito era algo melhor do que o corpo; mas que aquele que fez o corpo e o espírito era muito melhor” (ibid.).

Quarto modo ou razão: “Eles também compreenderam que a beleza do corpo era sensível e que a beleza do espírito era inteligível, e puseram a beleza inteligível acima da beleza sensível. Chamamos sensíveis às coisas que podem ser sentidas pela visão e pelo toque do corpo, e inteligíveis as que podem ser compreendidas ou conhecidas pela visão da mente. Portanto, o corpo e a alma seriam mais ou menos belos na presença destas coisas, e se tornariam absolutamente nada se lhes faltasse toda beleza; assim eles viram que havia algo pelo qual essas coisas receberam sua beleza, e no qual estava a primeira e imutável beleza e, portanto, incomparável; e acreditaram justamente que este era o princípio pelo qual todas as coisas tinham sido feitas” (ibid.).

A verdade de Deus pode ser conhecida de muitas maneiras. Portanto, Deus é uma e simples essência, consistindo em nenhuma diversidade de partes ou acidentes; no entanto o Apóstolo em Rom. 1, 20 diz no plural “os atributos invisíveis de Deus”, porque a verdade de Deus é conhecida de muitas maneiras “através das coisas criadas”. Pois o Criador é conhecido por ser eterno através da perpetuidade das criaturas, onipotente pela grandeza das criaturas, sábio pela ordem e disposição das criaturas, e bom pelo seu governo. Todas estas qualidades dizem respeito à demonstração da unidade da divindade.

Como o vestígio da Trindade aparece nas criaturas: Resta agora mostrar se, através das coisas criadas, é possível encontrar qualquer vestígio, ou pista da Trindade. Sobre este ponto, Santo Agostinho, no Livro VI De Trinitate (10, 12) diz: “É necessário que, vendo com a nossa compreensão o Criador “através das coisas que foram feitas” (Rom., 1, 20), conheçamos a Trindade. De fato, o vestígio desta Trindade aparece nas criaturas. Pois estas coisas, que foram feitas pela arte divina, mostram em si mesmas certa unidade, uma espécie e uma ordem. Deste modo, cada uma destas realidades criadas é algo único, assim como as naturezas dos corpos e das almas; e são formadas de acordo com uma determinada espécie, assim como as figuras ou qualidades dos corpos, os ensinamentos e artes das almas; e procura ou tem certa ordem, assim como os pesos ou posições dos corpos, os amores e as delícias das almas. Assim, o vestígio da Trindade resplandece nas criaturas. Na Trindade encontra-se a origem suprema de todas as coisas, a beleza mais perfeita e o deleite mais feliz”.

Ora – como mostra Agostinho em De vera Religione (55, 113) – a origem suprema “é Deus Pai de quem todas as coisas procedem, e de quem procede o Filho e o Espírito Santo; entende-se que a beleza mais perfeita é o Filho, isto é, a verdade do Pai, em nenhum lugar ao contrário d’Ele, a quem veneramos com o Pai e no Pai; e esta beleza é a forma de todas as coisas que foram feitas por um e têm também referência a um. Mas todas estas coisas não teriam sido feitas pelo Pai através do Filho, nem teriam sido salvas para os seus fins, se Deus não fosse excessivamente bom, Aquele que não inveja nenhuma natureza que recebe a bondade d’Ele; e Ele concedeu tudo o que um quis e tudo o que a outra natureza podia, para que pudessem permanecer com o próprio bem. E entende-se que esta bondade é o Espírito Santo que é o dom do Pai e do Filho.

Portanto, é lógico que devemos reverenciar e manter este dom de Deus, igualmente imutável, juntamente com o Pai e o Filho. Assim, através da consideração das criaturas, entendemos que a Trindade é uma só substância, ou seja, Deus Pai, de quem somos, o Filho, por meio de quem somos, e o Espírito Santo, em quem somos; isto é, um princípio ao qual recorremos, uma forma que seguimos, e a graça com a qual nos reconciliamos: ou seja, um criador por quem somos criados, a imagem d’Ele por quem somos formados em unidade, e a paz, com a qual aderimos à unidade. Foi Deus que em Gen., 1, 3 disse: “Que haja luz” e o Verbo através do qual “tudo o que existe substancial e naturalmente foi criado” (João., 1, 1- 3); e o dom da sua bondade, pelo qual lhe agradou tudo o que foi feito, foi reconciliado com o Criador através do Verbo para que não perecesse.

Deste modo, foi demonstrado como a imagem da Trindade é, em certa medida, indicada nas criaturas. Mas o conhecimento suficiente da Trindade não pode e não poderia ser obtido através da contemplação das criaturas sem a revelação da doutrina ou sem uma inspiração interior. É por isso que os antigos filósofos viam a verdade como nas sombras e de longe, sendo cortados da contemplação da Trindade, como ocorreu aos magos do Faraó no terceiro signo (Ex., 8). Mas nós, pela fé das coisas invisíveis, somos ajudados pelas coisas criadas.

Como a imagem da Trindade está na alma: “Mas agora, cheguemos a esta dissertação em que encontraremos a imagem da Trindade na mente humana que conhece Deus ou pode conhecê-lo”. Pois – como diz Santo Agostinho em De Trinitate XIV, 8, 11 – “embora a mente humana não seja da mesma natureza que Deus, no entanto, a imagem daquela natureza que nenhuma natureza supera em bondade, deve ser procurada e encontrada na parte mais nobre de nosso ser, ou seja, na mente. Na verdade, na própria mente, mesmo antes de ser participante de Deus, a sua imagem é encontrada: pois embora esteja deformada, tendo perdido a sua participação em Deus, a imagem de Deus permanece. Pois a mente é a imagem de Deus, precisamente porque é capaz de o ser, e pode ser participante dele”. Portanto, procuremos na mente a Trindade que é Deus.

CAPÍTULO II

Mostra-se que há três coisas na alma que se diz serem relativamente as mesmas, a saber, memória, inteligência e amor: “A alma lembra-se, compreende e ama. Se compreendermos isto, já vemos a Trindade; ainda não vemos Deus, mas já vemos uma imagem de Deus” (Santo Agostinho, De Trin., XIV, 8, 11). Aqui, certa Trindade de memória, inteligência e amor aparece. Portanto, “lidaremos preferencialmente com estas três faculdades: memória, entendimento e vontade” (De Trin., X, 11, 17).

Consideração muito sutil e conveniente semelhança – Como diz Agostinho no Livro X De Trinitate (11, 18): “Estas três faculdades não são três vidas, mas uma vida; nem são três mentes, mas uma mente; nem são três essências, mas uma essência. Ora, a memória tem um sentido de relação, tal como, de forma semelhante, a inteligência e a vontade, isto é, o amor; mas a vida, a mente e a essência têm um sentido absoluto. Portanto, estas três faculdades, porque são uma vida, uma mente, uma essência, formam uma realidade. E tudo o que se refere a cada uma destas coisas é expresso no singular e não no plural, mesmo quando consideradas em conjunto. Mas são três coisas, pelo simples fato de estarem reciprocamente relacionadas entre si”.

Como são iguais: porque em sua totalidade são compreendia umas pelas outras: “São também iguais, não só uma é igual à outra, mas também cada uma é igual a todas, pois de outra forma não se entenderiam reciprocamente. Deste modo entendem-se mutuamente; pois uma é compreendida por cada uma e todas são compreendidas por cada uma” (ibid.).

Aqui é mostrado como todas são compreendidas umas pelas outras: “De fato, lembro-me que tenho memória, inteligência e vontade; e sei que conheço, quero e recordo; e tenho vontade de querer, lembrar, compreender ou saber” (ibidem).

Como a memória compreende as três coisas: “Lembro-me simultaneamente da minha mente, da minha inteligência e da minha vontade. Pois o que não me lembro com a minha memória não está na minha memória. Ora, nada está tanto na memória como a própria memória. Por isso, lembro-me de tudo isso. Do mesmo modo, tudo o que sei, sei que conheço; e tudo o que quero, sei que quero; e tudo o que me lembro, sei que me lembro. Assim, lembro-me de toda a minha inteligência e toda a minha vontade” (ibid.).

Como a inteligência compreende plenamente as três coisas: “Da mesma forma, quando sei estas três coisas, as sei todas de uma vez: pois não há nada que eu não saiba, exceto o que eu não sei. O que não sei, não me lembro, nem o quero. Todo cognoscível que não conheço, consequentemente também não me lembro, e nem o quero; e todo cognoscível do qual me lembro e o quero, consequentemente o conheço” (ibid.).

Como a vontade compreende essas três coisas: “A minha vontade também compreende toda a minha inteligência e toda a minha memória, quando uso tudo o que sei e o que me lembro. Assim, sendo todas as coisas plenamente compreendidas por cada uma delas reciprocamente, cada uma delas é igual a cada uma delas na sua totalidade, e cada uma delas na sua totalidade é igual a todas elas reciprocamente consideradas em sua totalidade; e estas três coisas são uma só coisa: uma vida, uma mente, uma essência” (ibid.).

A imagem da Trindade e da unidade suprema, onde existe uma essência e três pessoas, é a mente humana, embora seja uma imagem inadequada (De Trin., X, 12, 19). Mas aqui a mente é tomada como a própria alma na qual a imagem da Trindade está contida. Mas, como diz Agostinho (De Trin., XV, 7, 11), a mente em si não é a alma em si, mas o que nela há de mais excelente, ou o que nela se destaca. Devemos também ter em mente o seguinte: que a memória não é apenas das coisas ausentes e passadas, mas também de coisas presentes, caso contrário, como diz Agostinho em De Trinitate XIV (11, 14), ela não se compreenderia a si própria.

Se trata de averiguar em que sentido essas três coisas são ditas como um ser e uma essência: aqui devemos refletir diligentemente em que sentido o que Agostinho disse deve ser tomado: que essas três coisas, a saber, memória, inteligência e vontade, são um ser, uma mente, uma essência. E isto não parece ser verdade de acordo com a propriedade da linguagem. Na verdade, a mente, ou seja, o espírito racional, é uma essência espiritual e incorpórea. Mas essas três (memória, inteligência e vontade) são propriedades ou faculdades naturais da própria mente, e diferem reciprocamente umas das outras: pois a memória não é inteligência nem vontade, nem a inteligência é vontade ou amor.

Também se diz que estas três coisas estão em relação umas às outras – como diz Agostinho em De Trinitate IX (3, 3). “De fato, a mente não pode amar a si própria”, nem se lembrar de si própria, “a menos que conheça a si própria. Pois como pode amar ou lembrar-se “do que não sabe”? “Estas três coisas são, admiravelmente, inseparáveis de si mesmas e, no entanto, cada uma delas em sua totalidade são uma essência, embora se diga que são mutuamente relativas” (ibid., 5, 8).

Isto esclarece o que foi pedido anteriormente, a saber, de que forma estas três coisas são ditas como uma só coisa: vejamos agora como estas três coisas são ditas como uma substância: porque existem substancialmente na mesma alma ou mente, e não como os acidentes nos sujeitos, que podem estar presentes e ausentes. Daí que Agostinho, em De Trinitate IX (4, 5), diz: “E se formos capazes de as distinguir, percebemos ao mesmo tempo que estas três coisas existem substancialmente na alma, e não como um sujeito cuja cor está no corpo; pois embora tenham um sentido de relação mútua, elas estão em si mesmas substancialmente na sua substância”. Aqui está, então, o sentido em que estas três coisas são ditas como sendo um ser ou uma substância.

E estas três faculdades, como diz Santo Agostinho em De Trinitate XV (20, 39), “naturalmente instituídas por Deus, qualquer pessoa pode vê-las em toda a sua vivacidade na alma; e pode ver que grande bem há nelas ao ser capaz de recordar, contemplar e amar a natureza eterna e imutável: (com efeito, a recorda pela memória, a contempla pela inteligência, e a abraça pelo amor), certamente, desta forma, a imagem da Trindade suprema é descoberta”.

CAPÍTULO III

Nessa semelhança existe uma disparidade: “No entanto, cuidado em comparar esta imagem, feita pela própria Trindade, com a Trindade de tal forma que julgueis que existe uma semelhança total; mas antes, nesta fraca semelhança vedes também uma grande disparidade” (Santo Agostinho, loc. cit.).

Primeira disparidade: “E esta disparidade pode ser brevemente mostrada. Um homem sozinho, através destas três faculdades, conhece, recorda-se e ama; este homem que não é nem memória, nem inteligência, nem amor, mas possui estas três coisas. Portanto, um homem que tem estas três coisas, no entanto, ele próprio não é estas três coisas. Por outro lado, na simplicidade daquela natureza suprema que é Deus, embora ele seja um só Deus, existem três pessoas, o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo” (Santo Agostinho, De Trin. XV, 22, 42); e estas três pessoas são um só Deus. “Portanto, uma coisa é a Trindade como uma mesma realidade, e outra coisa é a imagem da Trindade em outra coisa; e por esta imagem, também aquela em que estas três coisas são chamadas uma imagem, isto é, o homem; tal qual a pintura cujo conteúdo chamamos de imagem; mas a imagem é chamada uma imagem por causa da pintura que está nela” (Santo Agostinho, De Trin., XV, 23, 43).

Uma segunda disparidade: “Novamente, esta imagem, que é o homem que possui estas três coisas, é uma só pessoa; mas a Trindade não é uma só pessoa, mas três pessoas: o Pai do Filho, o Filho do Pai, e o Espírito do Pai e do Filho. Assim, nesta imagem da Santíssima Trindade, estas três coisas não são um só homem, mas pertencem a um só homem. Por outro lado, nessa Trindade suprema, da qual isto é a imagem, essas três coisas não são de um só Deus, mas são um só Deus; e essas pessoas são três, e não uma só” (Santo Agostinho, loc. cit.). “Pois essas três coisas não são de um só homem, mas são do homem ou no homem. Mas podemos dizer que a Trindade está em Deus para que seja algo de Deus, sem ela própria ser Deus” (De Trin., XV, 7, 11). Estamos longe de acreditar nisto. Portanto, digamos que na nossa mente existe a imagem da Trindade, mas é uma imagem fraca e indefinida que tem a semelhança da Trindade, de tal forma que, em seu máximo, é diferente.

Mas há de se ter em mente que, como diz Agostinho em De Trinitate XV (12, 15), “Esta Trindade da mente não é apenas a imagem de Deus porque se recorda, conhece e ama a si mesma, mas também porque pode recordar, conhecer e amar aquele para quem foi feita”.

Outra atribuição da Trindade na alma: a mente, o conhecimento, e o amor – A Trindade na alma, que é a imagem da Trindade suprema e inefável, também pode ser distinguida de outro modo e através de outros nomes. Com efeito, diz Agostinho em De Trinitate IX (4, 3 e 5), “Há três coisas: a mente, o seu conhecimento e o seu amor. Pois a mente se conhece e ama a si mesma; e só pode amar a si mesma se também conhecer a si mesma. A mente e o seu conhecimento são duas coisas. Do mesmo modo, a mente e o seu amor são duas outras coisas. Quando a mente se conhece e ama a si mesma, a trindade permanece, ou seja, mente, amor e conhecimento. Ora, mente aqui não é tomada como alma, mas como aquilo que é mais excelente na alma.

De que modo são uma só: Estas três coisas, embora se distingam uma da outra, são uma só, uma vez que existem substancialmente na alma.

A mente é tomada pelo Pai, o conhecimento pelo Filho, e o amor pelo Espírito Santo – a própria mente é como o Pai, e o seu conhecimento é como a prole. “De fato, a mente, quando conhece a si mesma, gera o conhecimento de si mesma; e só ela é como o pai do seu próprio conhecimento” (Santo Agostinho, De Trin., IX, 12, 18). O terceiro, é o amor que procede da mente e do conhecimento, quando a mente, conhecendo a si mesma, se ama; pois não poderia amar a si mesma, se não conhecesse a si mesma: ama também a sua prole, ou seja, o seu conhecimento, e assim o amor é certo abraço entre pai e prole.

O conhecimento não é inferior à mente, nem o amor é inferior a ambos: “Nem a prole é inferior ao pai, pois a mente se conhece na medida de seu próprio ser; nem o amor é inferior ao pai e à descendência, isto é, à mente e o conhecimento, pois a mente é amada na medida de seu próprio conhecimento e ser” (Santo Agostinho, ibid.).

Como a mente, por estas coisas, progride no conhecimento de Deus: Assim a mente racional, ao considerar estas três coisas e a única essência na qual elas se encontram, estende-se para contemplar o Criador e vê a Trindade na unidade e a unidade na Trindade. O homem sabe, então, que o Deus único é uma só essência e um só princípio. Deste modo, percebe que se houvesse dois deles, ou ambos seriam insuficientes ou um deles seria supérfluo; pois se a um faltasse algo que o outro tivesse, a perfeição ali não seria completa; mas se a um não faltasse nada que o outro tivesse, uma vez que todas as coisas estariam em um, o outro seria supérfluo; então, compreendeu que há um só Deus, um só criador de todas as coisas; também viu que este Deus sem sabedoria seria como uma coisa vazia; e assim compreendeu que, como homem, tinha a sabedoria que foi gerada pelo próprio Deus; e como ama a sua sabedoria, compreendeu também que ali havia amor.

CAPÍTULO IV

Trata-se aqui da unidade suprema da Trindade: portanto, de acordo com esta reflexão, como diz Agostinho em De Trinitate IX (4, 1), “Cremos que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, criador e motor de todas as criaturas. Cremos que nem o Pai é o Filho, nem o Espírito Santo é Pai ou o Filho, mas que eles são uma Trindade de pessoas reciprocamente relacionadas umas com as outras”. Pois, como o próprio Agostinho diz no livro De Fide ad Petrum (1, 4), uma é a natureza ou essência do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não uma só pessoa: “Pois se houvesse uma só pessoa, da mesma forma que a substância do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não se falaria verdadeiramente de uma Trindade. Além disso, a Trindade seria sem dúvida verdadeira, mas a própria Trindade não seria um só Deus; se, em certo sentido, o Pai e o Filho e o Espírito Santo se distinguissem um do outro pela propriedade das pessoas, também estariam separados pela diversidade das naturezas”. “Ora, a fé dos Patriarcas, dos Profetas e dos Apóstolos prega que o único Deus é a Trindade” (ibid.). “Portanto, na Santíssima Trindade, um só Deus é o Pai que, sozinho, essencialmente gera o seu Filho único de si mesmo; e um só Deus é o Filho que, sozinho, é essencialmente nascido de um só Pai; e um só Deus é o Espírito Santo que, sozinho, essencialmente procede do Pai e do Filho. Ora, uma só pessoa não pode fazer tudo isto: gerar-se a si mesmo, nascer de si mesmo e proceder de si mesmo” (ibidem., 6). Pois, como diz Santo Agostinho em De Trinitate I (1, 1): “Não há nada que gere a si mesmo”.

DIVISÃO DA PRIMEIRA PARTE DO TEXTO DE PEDRO LOMBARDO

Nesta parte o Mestre mostra a unidade da essência divina e as pessoas da Trindade por meio de razões e semelhanças; Ele a divide em duas partes: na primeira mostra a unidade da essência divina por meio de razões naturais; na segunda mostra as pessoas da Trindade por meio de semelhanças nas criaturas, onde diz: “Resta agora mostrar se, através das coisas criadas, é possível encontrar qualquer vestígio, pista ou pequeno vestígio da Trindade”.

Na primeira parte, faz três coisas: primeiro, apresenta o testemunho de autoridade do Apóstolo que prova a possibilidade da unidade da essência divina; segundo, acrescenta a prova, onde diz: “Como diz Santo Ambrósio”; terceiro, exclui uma objeção, onde diz: “Portanto, Deus é uma e simples essência… , no entanto, o Apóstolo… diz no plural: “os atributos invisíveis de Deus”.

A segunda parte, na qual o Mestre acrescenta a prova, é dividida em quatro partes, de acordo com as quatro razões estabelecidas. A diversidade destas provas baseia-se nas formas de conhecer a Deus a partir das criaturas; Dionísio (De div. nom., 7) expõe estas provas. Com efeito, ele diz que, partindo das criaturas, chegamos a Deus por três maneiras: por causalidade, por remoção, e por eminência. A razão para isto é a seguinte: o ser da criatura provém de outra. Portanto, de acordo com isto, somos conduzidos ou guiados para a causa da qual procedemos. Isto pode ocorrer de duas maneiras: ou quanto ao que foi recebido, e assim somos conduzidos ao modo de causalidade; ou quanto ao modo de receber, uma vez que é recebido imperfeitamente; e assim temos duas maneiras: a primeira, na medida em que há uma remoção da imperfeição de Deus; a segunda, na medida em que o que foi recebido na criatura é encontrado de modo mais perfeito e nobre no Criador; e este é o modo por eminência.

Por conseguinte, a primeira razão é por meio da causalidade; e é formulada da seguinte forma: o que quer que tenha seu ser do nada, necessariamente procede de outro, do qual deriva o seu ser; assim todas as criaturas têm seu ser do nada – o que se manifesta em sua imperfeição e potencialidade; logo é necessário que sejam a partir de algo único e primeiro, e este é Deus.

O segundo argumento procede pela via da remoção; e é formulado deste modo: para além de tudo o que é imperfeito, deve haver algo perfeito, ao qual nenhuma imperfeição se mistura; assim, o corpo é imperfeito, uma vez que é limitado, móvel, e finito em suas dimensões; portanto deve haver algo para além dos corpos que não é um corpo.

Da mesma forma, tudo o que é incorpóreo e mutável é por natureza imperfeito; portanto, para além de todas as espécies mutáveis, tais como as almas e os anjos, deve haver um ente incorpóreo, imóvel, e completamente perfeito, e esta é Deus.

Os outros dois argumentos são formulados pela vida da eminência. Ora, a eminência pode ser considerada de duas maneiras: ou quanto ao ser, ou quanto ao conhecimento.

Deste modo, o terceiro argumento é formulado por meio da eminência no ser; e é o seguinte: se diz que o bom e o melhor estão em relação ao ótimo; assim, nas substâncias, encontramos o corpo que é bom e o espírito criado que é melhor; em ambos, no entanto, a bondade não existe por si só. Portanto, deve haver algo ótimo do qual a bondade deriva em ambos.

O quarto argumento é baseado na eminência do conhecimento; e é este: em todas as coisas em que é possível encontrar o mais belo e o menos belo, é possível encontrar certo princípio de beleza, por cuja proximidade se diz que uma coisa é mais bela do que outra; por isso, descobrimos que os corpos são belos segundo a beleza sensível, e os espíritos, por sua vez, segundo a beleza inteligível, e por consequência são mais belos; por isso, deve haver algo em razão do qual tanto os corpos como os espíritos são belos, e ao qual os espíritos criados estão mais próximos.

“Resta agora mostrar se, através das coisas criadas, é possível encontrar qualquer vestígio, ou pista da Trindade”. Aqui o Mestre mostra as pessoas da Trindade por meio de semelhanças nas criaturas: primeiro, pela semelhança do vestígio; segundo, pela semelhança da imagem, onde diz: “Mas agora cheguemos a esta dissertação em que encontraremos a imagem da Trindade na mente humana”. Sobre o primeiro ponto faz duas coisas: primeiro, através do testemunho de autoridade de Santo Agostinho, mostra como as pessoas da Trindade são representadas como vestígio nas criaturas; segundo, partindo desta semelhança, conclui a distinção das pessoas, onde diz: “Assim, através da consideração das criaturas, entendemos que a Trindade é de uma só substância”. Primeiro, ele distingue as pessoas em relação a nós, de três modos: segundo a nossa partida de Deus; segundo o nosso regresso a Ele, onde diz: “isto é, um princípio a que recorremos”; e segundo o benefício do próprio Deus, onde diz: “isto é, um criador por quem fomos criados”. Em segundo lugar, conclui, em comparação com todas as coisas, onde diz: “Foi Deus que… disse: “Que haja luz”. Finalmente, mostra que a representação do vestígio é insuficiente, onde diz: “Eis que foi mostrado de que forma a imagem da Trindade é indicada, até certo ponto, nas criaturas”.

QUESTÃO I

Uma vez que nesta parte se mostra como o conhecimento de Deus é alcançado através do vestígio nas criaturas, levantam-se duas questões: a primeira, relativa ao nosso conhecimento de Deus; a segunda, relativa ao vestígio nas criaturas.

Se Deus é conhecido através das criaturas; 2. Se a existência de Deus é evidente por si mesma; 3. Se Deus pode ser conhecido através das criaturas, e de quem é próprio conhecer Deus através das criaturas; 4.

ARTIGO 1

SE DEUS PODE SER CONHECIDO PELO ENTENDIMENTO CRIADO

(Iq12a12)

OBJEÇÕES

  1. Deus não é conhecido pelo entendimento criado. Pois Dionísio (De div. nom., 1) diz que não nos é possível nomear Deus, nem o conhecer; ele prova-o assim: o conhecimento é apenas de coisas existentes; Deus está acima de todas as coisas existentes; por conseguinte, ele é superior a todo o conhecimento.
  2. Deus difere de todas as coisas inteligíveis para nós, tal como o inteligível difere do sensível. Assim, o sensível não pode conhecer o inteligível. Por conseguinte, nem Deus pode ser conhecido pela nossa compreensão.
  3. Todo o conhecimento é realizado por meio de algumas espécies, através da informação produzida da assimilação do cognoscente à coisa conhecida. Assim, é impossível que uma espécie seja abstraída de Deus, sendo este simplíssimo. Por conseguinte, não é possível conhecê-lo.
  4. Por outro lado – como diz o Filósofo (Phys., III, texto 4) – todo infinito é desconhecido; porque é próprio do infinito estar fora do receptor, e como tal é desconhecido. Ora, Deus é infinito, portanto, é desconhecido.
  5. O Filósofo (De an., III, texto 1) diz que as imagens se relacionam com o entendimento da mesma forma que as cores se relacionam com a visão. Assim, a visão corporal não vê nada desprovido de cor. Por conseguinte, o nosso entendimento nada sabe sem a imagem. Portanto, uma vez que nenhuma imagem pode ser formada de Deus, como se diz em Isaías, 40, 18: “Que imagem lhe vais dar”, parece que Deus não é conhecido pela nossa compreensão.

MAS AO CONTÁRIO, em Jeremias, 9, 24, diz: “Mas o que se gloriar, glorie-se disso: em me entender e me conhecer”. Portanto, não é vangloriar-se se Deus nos exorta a fazê-lo. Portanto, parece que há possibilidades de conhecer Deus.

Além disso – como já foi dito antes – segundo o Filósofo, o fim último da vida humana é a contemplação de Deus. Assim, se o homem não o pudesse alcançar, teria sido constituído em vão, pois em vão, segundo o Filósofo (Phys., II, texto 62), é o que está destinado a um fim que não é alcançado; mas isto é inadmissível, como é dito nos Salmos, 88, 48: “Porque me constituíste em vão?

Além disso – como diz o Filósofo (De an., III, texto 7), o inteligível difere do sensível nisto: o sensível excessivo destrói o sentido, enquanto que o mais inteligível não destrói o entendimento, mas conforta-o. Assim, uma vez que Deus é sumamente inteligível, na medida em que Ele está em Si mesmo, uma vez que Ele é o primeiro inteligível, é evidente que Ele pode ser conhecido pelo nosso entendimento; pois isso só seria impedido pela Sua excelência.

SOLUÇÃO

Aqui a questão não é se Deus pode ser visto imediatamente na sua essência, pois essa é uma questão diferente; aqui tratamos se Ele pode ser conhecido de algum modo. É por isso que afirmamos que Deus é cognoscível, mas Ele não é conhecido de tal forma que a Sua essência seja compreendida. Pois cada cognoscente tem conhecimento da realidade conhecida, não de acordo com o modo da realidade conhecida, mas de acordo com o modo do cognoscente. Ora, nenhum modo da criatura atinge o auge da majestade divina. Portanto, é necessário que Deus não seja perfeitamente conhecido por ninguém do modo como ele próprio se conhece perfeitamente.

RESPOSTAS

  1. Deus não existe da mesma forma que estes entes existem, mas n’Ele está eminentemente a natureza da entidade. Portanto, assim como Ele não está totalmente privado de entidade, também não está totalmente privado de conhecimento, a ponto de não ser conhecido; mas Ele não é conhecido como são os outros entes existentes, que podem ser compreendidos pelo nosso entendimento criado.
  2. Embora, em razão da Sua natureza, Deus seja mais distinto de qualquer coisa inteligível do que o inteligível é do sensível, no entanto Ele é mais adequado ao carácter de cognoscibilidade. De fato, tudo o que está separado da matéria tem o carácter de ser conhecido como inteligível: mas o que é material é conhecido como sensível.
  3. A espécie pela qual o conhecimento é produzido, está na potência cognoscente de acordo com o modo do próprio cognoscente: portanto, as espécies de coisas que são mais materiais que o entendimento, estão nele de modo mais simples do que na realidade em si, e, portanto, essas coisas são conhecidas pela abstração. Ora, Deus e os anjos são mais simples do que o nosso entendimento; portanto, as espécies em nosso entendimento, pelas quais os conhecemos, são menos simples. Portanto, não se diz que conhecemos estas realidades pela abstração, mas pela impressão que temos delas nas nossas inteligências.
  4. O infinito é dito de duas maneiras: privativamente e negativamente. Infinito no sentido privativo é aquilo que, pela sua espécie, é naturalmente apto a ter um fim que não tem; e este infinito, sendo imperfeito, não é perfeitamente conhecido por causa da sua imperfeição, mas é conhecido de forma relativa. O infinito no sentido negativo é aquele que não é de modo algum finito; e este infinito é algo que se estende a todas as coisas, é mais perfeito, e não é capaz de ser compreendido pelo entendimento criado, mas pode ser abordado.
  5. O Filósofo (De an., III, texto 30) fala do conhecimento intelectual que é conatural para nós no nosso estado itinerante; e assim Deus não é conhecido por nós, exceto através de imagens, não de Si mesmo, mas a imagem do que é causado por Ele, pelo qual nós chegamos a Ele. Isto, contudo, não exclui que possa haver algum conhecimento do entendimento por uma via mais elevada, a saber, pela influência da luz divina; e para essa influência a imagem não é necessária.

Nós concedemos os outros pontos.

No entanto, ao último que conclui que Deus, mesmo no presente, é conhecido por nós no mais alto grau, deve ser salientado que o caso do entendimento e do sentido é em parte semelhante e em parte dissimilar. É semelhante nisto: assim como o sentido não é capaz em relação ao que não lhe é fornecido, assim também o entendimento não é capaz, pois todo o conhecimento é realizado de acordo com o modo do cognoscente – segundo Boécio (De consol., V, pr. 5, no início). Mas é diferente nisto: que o inteligível excelente não corrompe, como o sensível excelente corrompe; portanto, o entendimento não falha no conhecimento do inteligível excelente porque corrompe, mas porque não o atinge. É por isso que o entendimento criado não pode ver Deus perfeitamente.

ARTIGO 2

SE A EXISTÊNCIA DE DEUS É EVIDENTE POR SI MESMA

(I q2 a1)

OBJEÇÕES

  1. Parece ser evidente que Deus existe. De fato, se diz que são evidentes por si mesmas aquelas coisas cujo conhecimento é naturalmente incorporado em nós, tal como o todo que é maior do que as suas partes. Assim, segundo Damasceno (De fide, I, 1), o conhecimento da existência de Deus está naturalmente incorporado em nós. Portanto, a existência de Deus é evidente por si mesma.
  2. Da mesma forma que a luz sensível é com respeito à visão, também a luz intelectual é com respeito ao entendimento. Assim, é que a luz visível é vista por si mesma; de fato, nada é visto, exceto por meio dela. Portanto, Deus é imediatamente conhecido por si mesmo.
  3. O conhecimento é produzido pela união da realidade conhecida com o cognoscente. Assim, Deus é em si mesmo intrínseco à alma, ainda mais do que a alma é intrínseca a si mesma. Portanto, Ele pode ser conhecido por si mesmo.
  4. É evidente que é impossível pensar aquilo que não existe. Ora, é impossível pensar que Deus não existe. Por conseguinte, a sua existência é evidente por si mesma. A premissa menor é provada por Santo Anselmo (Prosl., 15): Deus é aquilo que é impossível pensar que algo maior do que Ele exista. Ora o que não se pode pensar que não existe é maior do que o que se pode pensar que não existe. Portanto, não é possível pensar que Deus não existe, sendo aquilo que nada maior do que Ele pode ser pensado. Pode ser provado de outra forma: nenhuma realidade pode ser pensada sem a sua essência, como por exemplo, o homem sem o animal racional mortal. Assim, Deus é o seu próprio ser, como diz Avicena (De intellig., 1). Portanto, não é possível pensar que Deus não existe.

MAS AO CONTRÁRIO, coisas que são evidentes por si mesmas, mesmo que sejam negadas exteriormente por palavras, não podem ser negadas interiormente no coração. Assim a existência de Deus pode ser negada com o coração, pois é dito em Salmos 13,1: “O tolo diz em seu coração: Não há Deus”. Por conseguinte, a existência de Deus não é evidente por si mesma.

Da mesma forma, tudo o que é a conclusão de uma demonstração não é evidente por si mesmo. Ora, a existência de Deus é demonstrada por filósofos (Phys., VIII, texto 33; Metaphys., XII, 35). Portanto, que Deus existe não é evidente por si mesmo.

SOLUÇÃO

Relativamente ao conhecimento de uma realidade, pode-se falar de duas maneiras: ou de acordo com a realidade em si, ou em relação a nós. Assim, falando de Deus em si mesmo, sua existência é evidente, e Ele próprio é conhecido, mas não porque o tornamos inteligível como tornamos as coisas materiais inteligíveis em ato.

Ora, falando de Deus em relação a nós, Ele pode ser novamente considerado de duas maneiras. Ou de acordo com a sua semelhança e participação, e desta forma a sua existência é por si só evidente, pois nada é conhecido exceto através da sua verdade, que é moldada por Deus. Ou de acordo com a suposição, isto é, considerando o próprio Deus, na medida em que Ele está na Sua natureza como algo incorpóreo; e, desta forma, Ele não é por si mesmo conhecido. Além disso, muitos negaram a existência de Deus, como todos os filósofos que não propuseram uma causa agente, como Demócrito e alguns outros (Metaphys., I, 9).

A explicação disto está no fato de que as coisas que são evidentes para nós são nos dadas a conhecer pelos sentidos, tal como, depois de vermos o todo e as suas partes, sabemos imediatamente que o todo é maior que a suas partes. Por isso diz o Filósofo (Anal. Post., I, texto 24): “Nós conhecemos os princípios quando conhecemos os termos”. Ora, conhecendo coisas sensíveis, não chegamos a Deus, exceto por um processo: na medida em que estas coisas foram causadas, e que toda coisa causada provém de alguma causa agente; e este primeiro agente não pode ser um corpo; por isso chegamos a Deus apenas por argumentos; e tal realidade não é imediatamente evidente. Este raciocínio é de Avicena (De intellig., 1).

RESPOSTAS

  1. O texto de Damasceno sobre o conhecimento de Deus incorporado em nós, deve ser entendido segundo a sua semelhança, e não segundo sua natureza, pois também se diz que todas as almas desejam Deus: desejam-no, sem dúvida, não na medida em que Ele é considerado em sua natureza, mas segundo sua semelhança; pois nada é desejado a não ser que tenha alguma semelhança com aquele que deseja; assim como nada é conhecido a não ser que tenha alguma semelhança com aquele que conhece.
  2. Nossa visão é proporcional a ver a luz corpórea por si mesma; mas nosso entendimento não pode conhecer nada naturalmente, exceto por meio de realidades sensíveis; e por isso não é possível chegar a coisas puramente inteligíveis, exceto por meio de argumentos.
  3. Embora Deus esteja na alma por essência, presença e potência, não está nela como objeto do entendimento; e isto é necessário para o conhecimento. Além disso, a alma também está presente a si mesma; mas a maior dificuldade está no conhecimento da alma: esta não pode ser alcançada a não ser pelo raciocínio dos objetos aos atos e dos atos às faculdades.
  4. O argumento de Santo Anselmo deve ser interpretado da seguinte forma: depois de conhecermos Deus, não se pode pensar que Ele não existe; no entanto, disso não se segue que não se pode negar ou pensar que Deus não existe; pois pode-se pensar que não existe algo do qual algo maior não possa ser pensado. Portanto, o seu raciocínio baseia-se nesta suposição: que existe algo do qual nada maior pode ser pensado. O outro argumento deve ser respondido de forma semelhante.

ARTIGO 3

SE DEUS PODE SER CONHECIDO PELO HOMEM ATRAVÉS DAS CRIATURAS

OBJEÇÕES

  1. Parece que Deus pode ser conhecido pelo homem através das criaturas. Pois em Romanos 1, 20 está escrito: “De fato, desde a criação do mundo, a realidade invisível de Deus – seu eterno poder e divindade – pode ser compreendido por meio do que foi criado”. Assim, de acordo com a exposição do Mestre, parece que “o que foi criado” é o homem. Portanto, Deus pode ser conhecido pelo homem através das criaturas.
  2. Parece que Deus pode ser conhecido pelo anjo. Pois, o conhecimento de Deus através das criaturas surge porque a bondade divina resplandece na criatura. Assim, o anjo, conhecendo realidades da sua própria espécie, vê nelas a bondade divina. Portanto conhece o Criador através das criaturas.
  3. Parece que até os brutos o conhecem. Pois nenhum preceito é dado para alguém que não conhece o preceito. Ora, em Jonas, 4:7, se diz que Deus ordenou a um verme que atacasse a hera. Portanto, o verme pode conhecer o preceito divino, e por isso também pode conhecer o ordenador.
  4. Parece que Deus também pode ser conhecido pelos pecadores: pois em Romanos 1,21 o Apóstolo diz “Tendo conhecido Deus, não O glorificaram como Deus”. Ora, estes eram pecadores.

MAS AO CONTRÁRIO, cada efeito que leva ao conhecimento de sua causa é, de alguma forma, proporcional a ela. Assim, as criaturas não são proporcionais a Deus. Portanto, por elas o homem não pode chegar ao conhecimento de Deus.

Parece que nem mesmo os anjos o podem conhecer. Pois, o que é diretamente conhecido não é conhecido por meio de qualquer outra coisa. Assim, os anjos conhecem Deus diretamente, vendo-o em sua essência. Por conseguinte, não o conhecem através de criaturas.

Parece que Deus tampouco é conhecido pelos brutos. Pois, nenhuma faculdade ligada a um órgão tem a capacidade de conhecer outra coisa que não seja a espécie material, uma vez que o conhecimento está no cognoscente de acordo com o seu próprio modo. Assim, os brutos têm apenas as faculdades cognitivas sensoriais, que estão ligadas a um órgão. Portanto, não podem de forma alguma conhecer Deus, que é completamente imaterial.

Parece que mesmo os pecadores não o conhecem. Pois a passagem de Mateus 5, 8: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus”, é comentada por Santo Ambrósio que diz: “Se os puros de coração são aqueles que verão Deus, então os outros não o verão; assim, nem os ímpios verão Deus, pois não é possível que vejam a Deus aqueles que não querem vê-lo.

SOLUÇÃO

Uma vez que a criatura procede exemplarmente de Deus como de uma causa analogamente semelhante – de modo que qualquer criatura o imita segundo a possibilidade de sua natureza – é possível ao homem chegar a Deus por meio das criaturas através de três vias: por causalidade, por remoção e por eminência.

Ora, para que partindo das criaturas, chegue-se a Deus, são necessárias duas coisas: primeiro, que se possa compreender, de alguma forma, o próprio Deus e, portanto, este processo de conhecimento não é apropriado aos brutos; segundo, que o conhecimento de Deus tenha o seu princípio nas criaturas e o seu fim no Criador; portanto, não é apropriado que os anjos conheçam Deus através das criaturas, e nem os bem-aventurados, que têm o processo inverso ao nosso: pois procedem do conhecimento de Deus às criaturas. Assim, este processo das criaturas para Deus é apropriado aos homens, quer sejam bons ou maus, de acordo com o nosso estado itinerante.

RESPOSTAS

  1. Concedemos o primeiro argumento.
  2. Embora o anjo saiba que a bondade divina resplandece na criatura, no entanto, ele não chega ao Criador partindo da criatura, mas sim ao contrário.
  3. O preceito de Deus não chegou ao verme na medida em que o verme apreendeu a intenção do preceito, mas porque sua estimativa, com um movimento natural, foi movida pela virtude divina para cumprir o que Deus tinha ordenado.
  4. Concedemos o quarto argumento.
  5. A criatura é um efeito não proporcional ao Criador, e portanto não conduz a um conhecimento perfeito dele, mas imperfeito.

6 e 7.Concedemos o sexto e o sétimo argumento.

8. Santo Ambrósio fala da visão de Deus por essência; esta visão estará na pátria celestial, a qual nenhum ímpio poderá alcançar. De forma semelhante, apenas os fiéis também alcançarão o conhecimento da fé. Ora, o conhecimento natural de Deus é comum aos bons e aos maus, aos fiéis e aos infiéis.

ARTIGO 4

SE COM O CONHECIMENTO NATURAL OS FILÓSOFOS CONHECERAM A TRINDADE A PARTIR DAS CRIATURAS

(Iq32a1)

OBJEÇÕES

  1. Parece que os filósofos naturais, por meio do conhecimento natural, chegaram ao conhecimento da Trindade, a partir das criaturas. Pois Aristóteles (De cael., I, 1) diz: “E através deste número, três, aplicamo-nos para magnificar o único Deus, superior a todas as perfeições das coisas que foram criadas”. Da mesma forma, Platão em Parmênides também diz muitas coisas sobre a compreensão do Pai, como o fazem muitos outros filósofos.
  2. Os filósofos atingiram o conhecimento das coisas que resplandecem nas criaturas. Assim, na alma a semelhança das “pessoas da Trindade ” é evidente. Portanto, parece que através das potências da alma, os filósofos foram capazes de chegar às pessoas da Trindade.
  3. Ricardo de São Victor (De Trin., I, 4) diz: “Acredito certamente que não faltam argumentos prováveis ou apodíticos para qualquer explicação de uma verdade necessária”. Assim, é necessário conhecer a Trindade. Então, parece que os filósofos poderiam ter tido argumentos para o seu conhecimento. E isto também aparece nas provas dadas acima na Distinção 2, Artigo 4, na qual a Trindade é provada.
  4. Na Glosa de 1 Romanos (“Invisibilia Dei“) se diz que os filósofos não chegaram ao conhecimento da terceira pessoa, a saber, do Espírito Santo; e o mesmo se aplica a Êxodo, 8, onde se diz que os magos do Faraó falharam no terceiro signo. Então parece que eles, pelo menos, alcançaram o conhecimento de duas pessoas.

MAS AO CONTRÁRIO é dito em Hebreus, 11, 1: “A fé é a substância das coisas esperadas, e a evidência das coisas não vistas”. Portanto, é um artigo de fé que Deus é uno e trino. Por conseguinte, não é algo alcançado pela razão.

SOLUÇÃO

O conhecimento das pessoas da Trindade não pode ser alcançado por raciocínio natural; por conseguinte, os filósofos não sabiam nada sobre este assunto, exceto, talvez, por revelação ou por ouvir de outros. A causa disso é que a razão natural só conhece Deus a partir das criaturas. Ora, todas as coisas que são ditas sobre Deus em relação às criaturas dizem respeito à essência e não às pessoas. Portanto, partindo da razão natural, só se pode chegar aos atributos da essência divina. No entanto, os filósofos foram capazes de conhecer as pessoas pelos atributos que lhes são apropriados, conhecendo a potência, a sabedoria e a bondade.

RESPOSTAS

  1. De acordo com a explicação do Comentador, Aristóteles não tentou inferir as pessoas da Trindade em Deus; pelo contrário, porque em todas as criaturas a perfeição aparece o número três, como no início, no meio e no fim, os antigos adoravam a Deus em sacrifícios e orações, repetidas três vezes. Por outro lado, se diz que Platão aprendeu muitas coisas sobre Deus ao ler os livros do Antigo Testamento que encontrou no Egito. Talvez até tenha alcançado a natureza divina do Pai, na medida em que nele, em certo sentido, concebe o mundo ideal ou arquetípico.
  2. A imagem da Trindade, que resplandece na alma, é totalmente imperfeita e deficiente, como o Mestre dirá mais tarde. Mas se diz que é evidente em comparação com a semelhança do vestígio.
  3. Se as palavras de Ricardo forem compreendidas universalmente – de que todas as verdades podem ser provadas pela razão – serão claramente falsas; pois os primeiros princípios, evidentes por si mesmos, não são provados. Mas existem algumas coisas evidentes por si mesmas que nos são ocultas, e que são provadas por coisas que nos são mais evidentes. Ora, as coisas que nos são mais conhecidas são os efeitos dos princípios. Mas, como já foi dito – as pessoas da Trindade não podem ser provadas pelos efeitos das criaturas. Por conseguinte, permanece que elas não podem ser provadas de forma alguma; todas as razões aduzidas são adaptações em vez de argumentos conclusivos. Mesmo que a compressão das pessoas da Trindade seja impossível, ainda permanecerá em Deus a bondade suprema, a bem-aventurança e a caridade.
  4. Os filósofos não chegaram ao conhecimento das duas pessoas quanto aos atributos próprios, mas apenas quanto aos atributos apropriados; porém não na medida em que são apropriados, pois então o seu conhecimento dependeria dos atributos próprios, mas na medida em que são atributos da natureza divina. E caso se objetar que da mesma forma, alcançaram o conhecimento do bem, que é apropriado ao Espírito Santo, assim como o conhecimento da potência e da sabedoria que são apropriados ao Pai e ao Filho, deve-se responder que não conheceram o bem quanto ao seu efeito principal, a saber, a Encarnação e a Redenção. Além disso, pode-se responder que não veneraram tanto a bondade divina – que não imitaram – como veneraram o poder e a sabedoria.

DISTINÇÃO I (LIVRO II)

TEXTO DE PEDRO LOMBARDO

CAPÍTULO I

Tratamos, embora apenas em parte e da melhor forma que podemos com o que acreditamos estar relacionado ao mistério da Trindade e Unidade Divina. Passemos agora para o estudo das criaturas.

Mostra-se que existe apenas um princípio e não muitos, como alguns acreditaram: A Escritura, ao tratar da criação das coisas, anuncia que Deus é o Criador de todas as criaturas visíveis e invisíveis desde o início dos tempos, afirmando: “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Com estas palavras Moisés, inspirado pelo Espírito de Deus, afirma que o mundo foi criado por Deus em um único princípio, rejeitando o erro daqueles que afirmavam que há alguns princípios eternos.

Platão afirmou três princípios – De fato, Platão (Timeo, 48 ss.) afirma que haviam três princípios, a saber, Deus, o exemplar e a matéria, todos estes eternos e incriados, e que Deus agiu como um artífice, e não como um criador.

CAPÍTULO II

Por qual razão é chamado propriamente de criador, e o que é criar e o que é fazer: Criador é aquele que faz algo do nada, e criar é propriamente fazer algo do nada; contudo, “fazer” não é tomando como obrar a partir do nada, mas sim através da matéria: daí que se diz que o homem ou o anjo “fazem” algo, e por isso são chamados artífices ou produtores, mas não criadores, pois este nome pertence apenas a Deus, que faz coisas do nada, faz algo de algumas coisas, e é criador, autor e artífice. Ele reservou o nome próprio “Criador” apenas para si mesmo, e os outros comunicou às criaturas. Por vezes na Escritura o nome de criador é usado como o de artífice e, criar é também usado como fazer, sem distinção.

CAPÍTULO III

As palavras “fazer” e “obrar” não são distintas da mesma maneira em Deus: É de se notar que as palavras “criar”, “fazer”, “obrar“ e similares não podem ser ditas em Deus da mesma maneira que são ditas nas criaturas. Porque quando dizemos que Ele faz algo, não se deve entender que Ele se move ao agir, ou que Ele sofre alguma paixão ao obrar, mas que implicamos algum novo efeito da Sua vontade divina, ou seja, que por Sua vontade eterna, algo novo passa a existir.

Em que sentido se diz que Deus faz algo: quando se diz que Ele faz algo, quer-se dizer quede acordo com a Sua vontade, ou pela Sua vontade, algo venha a existir sem que nada de novo ocorra Nele, de modo que o novo seja feito conforme a vontade Divina, sem qualquer mutação ou mudança. Nós, porém, mudamos à medida que agimos, porque nos movemos e nada fazemos sem movimento. No entanto, se diz que Deus age ou faz algo porque Ele é a causa das coisas que passam a existir; uma vez que coisas novas, que não existiam antes, começam a existir pela Sua vontade, sem movimento n’Ele, de modo que não se pode falar propriamente de “ato”, pois o ato consiste em movimento, e em Deus não há nenhum movimento.

Isto é demonstrado por uma semelhança: assim como pelo calor do Sol as coisas passam a existir sem qualquer movimento ou mutação nele, do mesmo modo, pela vontade de Deus, as coisas novas são feitas sem que haja qualquer mudança ou alteração no autor, que é o único e eterno princípio de todas as coisas.

Aristóteles aponta para três princípios: No entanto, Aristóteles (De gen., II, texto 51-52) disse que havia dois princípios, a saber, matéria, espécie, e um terceiro chamado operativo, e afirmou que o mundo existe e sempre existiu.

O ensino da doutrina Católica: O Espírito Santo, anulando o erro destes e outros semelhantes, e mostrando a disciplina da verdade, revela que “Deus criou o mundo no início dos tempos, e que Ele existiu eternamente antes do tempo, afirmando a sua eternidade e omnipotência” (Beda, In Gen., I, 1), pois como dissemos (I d45 e um pouco antes), Ele desejou fazê-lo; porque pela sua bondade e pela sua vontade coisas novas passam a existir.

Santo Agostinho no Enchiridion: Cremos, pois, que “a causa das coisas criadas, celestes e terrestres, visíveis e invisíveis, não é outra senão a bondade do Criador, que é o único Deus verdadeiro” (Santo Agostinho, Enchir., 9) que tem uma bondade tão grande que, como o bem supremo e eterno, quis tornar outros participantes da Sua bondade, com a qual Ele é completamente abençoado, tendo visto que pode ser comunicado sem ser diminuído de forma alguma. Ele quis comunicar aos outros que Ele era aquele bem com o qual foi abençoado, apenas pela Sua bondade e não por necessidade, porque é próprio do bem supremo desejar beneficiar e é próprio do Todo-Poderoso não receber o mal.

Por isso a criatura racional foi criada: E porque ninguém pode participar da sua bem-aventurança a não ser pela inteligência (que, quanto mais é exercida, mais plenamente é possuída), Deus fez a criatura racional para que compreendesse o bem supremo, e lhe compreendendo, o amasse, e lhe amando, o possuísse, e lhe possuindo pudesse desfrutá-lo.

De que forma a criatura racional é distinta: Ele a distinguiu de tal forma que uma parte dela permaneceu em sua pureza e não se uniu a um corpo, a saber, os anjos; e a outra parte se uniu a um corpo, a saber, as almas. Portanto, a criatura racional distingue-se em corpórea e incorpórea; a incorpórea é chamada anjo, e a corpórea é chamado homem, cuja subsiste pela alma racional e pela carne. A causa primeira da criatura racional foi a bondade de Deus.

Porque é que o homem e o anjo foram criados: Por isso, se perguntarmos porque é que o homem e o anjo foram criados, simplesmente responderemos: pela bondade de Deus. Assim diz Agostinho: “Porque Deus é bom, nós existimos, e na medida em que existimos, nós somos bons” (De Doct. Christians, I, 32, 35).

CAPÍTULO IV

Para que foi criada a criatura racional: Quando se pergunta para que foi criada a criatura racional, a resposta é: para louvar a Deus, para o servir, e para o desfrutar. Com estas coisas a criatura lucra, mas não Deus. Pois Deus é perfeito e portador da maior bondade, e não pode aumentar ou diminuir. E o fato de a criatura racional ter sido feita por Deus deve ser referido à bondade do Criador e à utilidade da criatura.

Uma resposta muito breve à pergunta do porquê ou para que fim foi feita a criatura racional: Quando se pergunta o porquê ou para que fim foi feita a criatura racional, pode ser dada uma resposta muito breve: para a bondade de Deus e para o benefício da criatura. De fato, é útil à criatura servir a Deus e desfrutar d’Ele. Quando dizemos que o homem ou o anjo foi feito por Deus, não é porque Deus, o Criador, que é o mais abençoado e não tem necessidade das nossas coisas, (cf. Sl 15,2), teve necessidade de nosso serviço, senão para que o pudesse servir e gozar dele; servi-lo é reinar, pois este beneficia aquele que serve, e não aquele que é servido.

Como o homem foi feito para servir a Deus, assim o mundo foi feito para servir o homem: e assim como o homem foi feito para Deus, isto é, para servi-lo, da mesma forma, o mundo foi feito para o homem, ou seja, para servi-lo. Assim o homem foi posto para que pudesse servir e ser servido, de modo que tudo redunde para seu bem; tanto a obediência que recebe, como a que estende. Assim, Deus quis ser servido pelo homem de tal modo que este serviço daria vantagens ao homem e não a Deus, e Ele quis que o mundo o servisse para que pudesse se beneficiar dele.

De que forma todas as coisas são nossas – Tudo foi bom para o homem: tanto o que foi feito para ele, como a razão pela qual ele foi feito. O Apóstolo diz: “Todas as coisas são nossas” (1 Cor 3, 22), ou seja, coisas superiores, iguais e inferiores: as superiores são nossas para desfrutá-las (como a Trindade); as iguais para viver; pois embora agora sejam superiores a nós, no futuro serão iguais a nós; e mesmo agora são nossas, pois as coisas dos senhores são ditas como “servas”, não por domínio, mas porque são para seu uso. Em alguns lugares da Escritura se diz que os próprios anjos são nossos, quando são enviados ao seu serviço para nosso bem (cf. Heb., 1, 14). E como as coisas superiores e iguais são nossas, as coisas inferiores também são nossas, porque são feitas para nos servirem.

CAPÍTULO V

Em que sentido se afirma nas Escrituras que o homem foi feito para reparar a queda dos anjos: Por vezes afirma-se nas Escrituras que o homem foi feito para reparar a queda dos anjos; mas isto não deve ser compreendido no sentido de que o homem não teria sido feito se o anjo não tivesse pecado, mas que esta foi uma das principais causas.

CAPÍTULO VI

Porque o homem foi constituído de tal modo que a alma está unida ao corpo: pergunta-se frequentemente porque é que a alma, tendo maior dignidade sem um corpo, está unida ao corpo.

A primeira causa: A primeira coisa a ser respondida é que Deus assim o quis, e nenhuma causa pode ser procurada a partir da sua vontade (ver Livro I d45).

Segunda: Pode-se acrescentar que Deus quis que a alma se unisse ao corpo na condição humana, para que se mostrasse um novo exemplo da união que existe entre Deus e o espírito: nessa união ama-se “de todo o coração” e vê-se “face a face” (Mt., 22, 37; I Cor., 13, 12). Pois poderia a criatura acreditar que se uniria ao seu Criador tão intimamente de modo a conhecê-lo e amá-lo com toda a sua alma, se não visse o espírito, que é uma criatura tão excelente, unido a uma criatura tão humilde que é carne; e unido com tal amor que não se resignaria a abandoná-la; como diz o Apóstolo: “Não queremos ser despojados do corpo, mas sim ser revestidos” (2 Cor.., 5, 4), pelo qual se mostra que o espírito criado está unido ao Espírito não criado com um amor inefável.

Como exemplo da futura comunhão que deveria ser alcançada entre Deus e o espírito racional em sua glorificação, Deus uniu a alma às vestes corpóreas e às mansões terrestres; e fez com que o barro ganhasse vida, para que o homem pudesse compreender que uma vez que Deus pode unir uma natureza tão díspar como corpo e alma, não seria impossível para Ele elevar a humildade da criatura racional – embora muito inferior – à participação da sua glória. Pois como o espírito racional foi humilhado ao unir-se ao corpo terreno, a providência de Deus acrescentou que depois, com o corpo já glorificado, deveria ser elevado à união com aqueles que tinham permanecido em sua pureza, para que aquilo que lhe tinha sido retirado em sua criação, fosse posteriormente recebido em sua glorificação pela graça de seu Criador.

Assim o nosso Criador, dispondo os espíritos racionais segundo a Sua vontade, determinou que aqueles que Ele tinha deixado em sua pureza primitiva teriam um lugar no céu; mas para aqueles que Ele uniu aos corpos terrenos, deu um lugar na terra, impondo uma regra de obediência a ambos, a saber, que alguns não deveriam cair de onde estavam, e que outros deveriam subir de onde estavam para onde não estavam. Deus também fez o homem com uma substância dupla: formando o corpo a partir da terra e fazendo a alma a partir do nada.

Terceira: As almas foram unidas aos corpos para que lhes servindo, pudessem merecer uma coroa maior.

Após o mistério da Trindade, três tipos de criaturas devem ser tratados. Em primeiro lugar a mais digna, isto é, a Angélica. – Do que foi dito acima parece que a criatura racional foi dividida em angélica e humana, sendo uma totalmente espiritual, ou seja, a angélica; e a outra, com uma parte corpórea e uma parte espiritual, ou seja, o homem. Uma vez que é necessário lidar com elas, a saber, com a criatura espiritual e a corpórea, e com a racional e a não-racional, devemos primeiro lidar com a racional e espiritual, ou seja, com os anjos, para que, seguindo o Criador, a nossa razão possa vir a conhecer a criatura mais digna, e depois descer para considerar a criatura corpórea, tanto a racional como a não racional, para que o conhecimento da Trindade não criada seja seguido pelo ensino de três tipos de criaturas e coisas relacionadas e ligadas a elas.

Tradução: Geovane Campanher

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