I. A paralaxe cognitiva de Saussure
Saussure abre seu tratado de linguística com a definição de linguagem: “Um sistema estabelecido e uma evolução”. Por isso mesmo ela é, segundo o suíço, “heteróclita”, ou seja, é um todo formado de duplo princípio. Princípios consonantes e harmônicos? Não: princípios em tensão e dissonantes. Segundo Saussure, a linguagem é sistema enquanto é sincrônica, enquanto é um recorte de um dado espaço e tempo, abstraído de todo parole individual, contemplado tão somente sua langue. Mas ela é evolução em sua concretude. Contudo, perguntemo-nos: por acaso já vimos por aí um triângulo cuja soma dos ângulos internos de qualquer triângulo não fosse igual a dois ângulos retos? Claro que não! Porque a definição de triângulo é justamente algo triângulo cuja soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual a dois ângulos retos. Assim também, nunca vimos um homem que não é racional (embora Saussure pareça ser uma exceção dessa regra), porque a definição de homem é justamente que seja racional. Mas, por algum motivo, a linguagem é sistema e não é, mas também é evolução e não é. É sincrônica, mas também não é, e também é diacrônica, e não é. Ora, o que ela é, então? Uma bola quadrada?
Saussure está, do início ao fim, sob o efeito de uma paralaxe cognitiva, uma auto-contradição, que faz de sua “ciência” ser tão real quanto às fábulas dos irmãos Grimm. E Saussure tinha plena noção disso, razão porque, para ele, “é o ponto de vista que determina o objeto”. Que maravilha! A tal ciência da língua não passa de “um ponto de vista”! Imaginemos se um doutor nos diagnosticasse com câncer, mas dissesse, ao final, que isso é tão somente seu ponto de vista. Tratar-se-ia de um doutor ou de um opinador profissional? Se alguma ciência é tão somente “um ponto de vista”, qual a diferença da ciência para a opinião? Se alguma ciência é tão somente um ponto de vista, por que devemos ouvi-la? Imaginemos o que seria do mundo sob COVID-19 se a medicina fosse tão somente um ponto de vista (embora muitos de fato pareçam crer nisso)?
Mas que solução damos nós?
II. O que a Gramática não é
Segundo o linguista, todo falante possui um conjunto de conhecimentos tácitos e profundos de sua língua e a disciplina da gramática é tão somente uma descrição desses fatos psicológicos profundos. E isto faria dela não ser uma disciplina normativa, prescritiva, mas tão somente descritiva. Para tanto, Saussure postula que essa disciplina descritiva, a Linguística, deve fazer parte da semiologia (“ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social”), que por sua vez faz parte da Psicologia Social, que faz parte da Psicologia. Parece razoável, afinal, Aristóteles já dizia algo a respeito da linguagem em seu tratado de Psicologia, o De Anima. Mas será mesmo que a linguística faz o que ela diz que faz?
Para descobrirmos se isso é verdade, a saber, se a linguística seja tal ciência descritiva subordinada à psicologia, só devemos olhar o estado de coisas que nos encontramos. Onde é ensinado a linguística? Cursos de psicologia? Filosofia? Antropologia, talvez? E a gramática é reservada aos estudantes de Línguas? Não. É justamente nos pretendentes ao magistério que é oferecido a Linguística. E as políticas públicas? Seriam elas baseadas na tradição gramatical da nação? Não, mas são justamente prescrições federais sob a tutela de linguistas (vd. O governo PT e Marcos Bagno). A tal “ciência descritiva” não passa de flatus vocis, de um blefe para se passar como ciência. A linguística é tão prescritiva quanto a Gramática, com a diferença que a primeira é ensoberbecida e mentirosa desde o nascimento, e a segunda existe faz 2,500 anos (desde o Peri Hermeneias de Aristóteles e o Crátilo de Platão).
A narrativa de qualquer linguista a respeito da história da ciência da língua é que todos os gramáticos, durante 2500 anos, são basicamente burros, mas Saussure recebeu dons espirituais direto de Deus para descobrir obviedades que ninguém mais (repita-se, durante 2500 anos) percebeu. Um verdadeiro enviado, Messias!
Mas voltemos à possibilidade da gramática ser a descrição do uso da língua. Se a descrição deve tomar em conta o uso da língua, ela não deve, por consequência, diminuir o estatuto e validade de qualquer ocorrência da língua, isto é, ela deve levar em conta todos os usos. Mas é evidente que novos usos são criados a cada instante. Se essa visão descritiva da língua é correta, a gramática é como um cálculo procurando o mínimo múltiplo comum de uma série de relações (a saber, os usos). Mas se se é adicionado uma nova relação, o produto do cálculo será distinto (o MMC de 12 e 9 é 36, mas o MMC de 12, 9 e 5 é 180). Se, porém, toda externalização de todos os falantes são legítimas externalizações, isto é, que devem ser levadas em conta pelo linguista, quer dizer que a tarefa histórica do linguista é impossível, porque a cada segundo surgirá novos dados que mudarão, por sua vez, o resultado da gramática. No momento mesmo em que o linguista escreveu seu livro, novos dados já estão sendo usados que fazem do livro que sequer foi escrito já defasado. Todo livro de “gramática descritiva” é, por sua natureza, defasado.
III. Que é a Gramática
Como, porém, os gramáticos resolvem esse problema? Como os gramáticos escrevem gramáticas normativas que não são defasadas por sua mesma natureza? Os gramáticos resolvem isso selecionando um corpus de melhores escritores, durante toda a história da língua, que representem uma média de paradigmas que é universal e fechado a todos eles. Nesse sentido, embora tenhamos quatro séculos de distância entre Camões e nós, o fato é que, ao vermos o que é usado entre os melhores escritores de nossa época, fechando os paradigmas que são universais a todos eles, podemos retroativamente pescar esses mesmos paradigmas em Camões, que não mudaram em nada (muito embora o português do século XVI fosse completamente diferente do português atual). Isto é possível justamente porque os bons escritores seguem, universalmente, padrões universalmente estabelecidos. Camões, Machado de Assis e Jorge de Lima, embora distantes entre si no tempo e no espaço, seguem eles as mesmas regras da escrita, justamente porque são bons escritores.
A Gramática não usa de Camões enquanto faz rodeios sintáticos próprios da literatura, ou nem enquanto ele segue à Gramática do Português do século XVI, mas Camões enquanto segue a gramática do século atual, e Camões fazia isso precisamente porque os bons escritores conservam a língua e fecham paradigmas, assim como, retroativamente, os bons escritores do século atual usam da mesma língua de Camões justamente porque é próprio do bom escritor o fechar paradigmas.
Pois bem, a gramática é a arte diretiva da escrita segundo regras morfossintáticas cultas, para que o homem possa transmitir suas concepções e argumentações com ordem, com facilidade e sem erro a outros homens distantes no espaço ou no tempo.
IV. Aceitabilidade gramatical
Se é assim, quer dizer que não faz parte, em sentido estrito, da gramática, o uso de palavras como “você”, “a gente” e outros usos que não são universais [aos melhores escritores de todos os tempos de uma língua]. Semelhantemente, tampouco o serão os pronomes neutros.
V. Mas a língua muda!
Objetar-nos-ão que a língua muda, e isso é natural.
Veja-se o longuíssimo excurso de Faraco acerca da mutabilidade não-teleológica e não axiológica da linguagem:
Os falantes que não conhecem lingüística, ao desenvolverem consciência de mudanças em sua língua, tendem, muitas vezes, a desenvolver paralelamente uma atitude negativa em relação a elas, entendendo-as como uma espécie de decadência: a mudança estaria empobrecendo a língua, degenerando-a, transformando-a para pior.
Outros, ao contrário, acreditando que mudança significa simplificação, tendem a desenvolver uma atitude positiva diante das mudanças, achando que a língua de hoje, por ser aparentemente mais simpies, e, portanto, mais “prática”, é melhor que a do passado.
Essas duas representações de senso comum da realidade da mudança lingüística, embora hoje abandonadas pelos lingüistas, ocorreram como formulações científicas na história de nossa disciplina.
Muitos dos primeiros estudiosos que se dedicaram aos estudos sistemáticos das línguas no início do século XIX entendiam — em acordo com o contexto ideológico mais amplo de seu tempo — que as línguas antigas, principalmente em função das características de sua organização morfológica densa em formas diferentes (declinações e conjugações), se encontravam em estágios superiores de desenvolvimento (isto é, mais adaptadas à expressão, por realizarem maior número de distinções gramaticais no nível morfológico) em comparação com as línguas contemporâneas. A história seria, nessa perspectiva, um processo degenerador, degradando a estrutura das línguas. Daí a relevância da tarefa de se buscar reconstituir o seu passado, tentando atingir o que seria uma espécie de gloriosa idade de ouro das línguas.
Esse ponto de vista estava enraizado na cosmovisão do chamado Romantismo alemão — movimento ideológico fortemente nacionalista — que, em reação ao Iluminismo e às turbulências trazidas pelas guerras napoleônicas ao contexto político da Europa, cultivava uma concepção nostálgica do passado.
Na metade do século XIX, o lingüista alemão August Schleicher (1821-1868), projetando aspectos de sua formação em ciências biológicas, criou uma teoria que concebia a língua como um organismo vivo, com existência própria independente de seus falantes, e exibindo períodos de desenvolvimento, m aturidade e declínio. Isso significava entender a história das línguas como um processo que, depois de atingir um estágio superior, acabava por produzir degeneração. Reforçava-se com isso, embora sobre outros fundamentos ideológicos, a tese dos lingüistas anteriores.
No fim do século XIX, o lingüista dinamarquês Otto Jespersen (1860-1943) defendeu, em seu livro Progress in Language (1894), tese exatamente oposta, isto é, de que na história das línguas não há decadência, degradação, degeneração; o que há é progresso, um caminho de mudanças na direção de formas mais aperfeiçoadas.
[…]
Hoje, os lingüistas não costumam operar com nenhuma dessas duas teses. Em outras palavras, não se entende mudança lingüística nem como progresso, nem como degeneração. Como diz Câmara Jr., “a palavra evolução, em lingüística, pressupõe apenas um processo de mudanças graduais e coerentes” (1972a, p. 192).
[…]
Lass argumenta que aceitar a existência duma dinâmica desequilíbrio/reequilíbrio implica aceitar também e necessariamente que a mudança terapêutica tem de ser categórica e abrupta, isto é, deve “corrigir” todos os casos e atingir toda a língua de uma só vez.
Sem essa implicação, interpretações teleológicas, sejam elas naturalistas ou funcionalistas, perderiam todo sentido. Como justificar que situações “anormais” possam perdurar sem “correção” abrupta e completa?
Aceitar a implicação, porém, nos conduz a um insuperável conflito com o material empírico disponível, principalmente com as observações referentes ao processo de difusão das mudanças. O perceptível por esses estudos é que, em geral, determinada mutação avança por pequenos incrementos e por meio da seleção gradual entre membros de um conjunto de variantes coexistentes, processo que costuma durar relativamente longos períodos de tempo (cf. Labov, 1972; Labov, Yaeger & Steiner, 1972; Lass, 1978, entre outros).
[…]
Ao mesmo tempo, Lass nota que não temos nenhuma base empírica para estabelecer, para além das línguas conhecidas, o que seria um estado natural ou funcional perfeito de língua, pressuposto necessário das interpretações teleológicas para se poder classificar situações ou línguas como em desequilíbrio.
Nossos registros só conhecem línguas bem-sucedidas: não há registro de língua desaparecida por defeitos internos; não se conhecem línguas aberrantes, nem abortos lingüísticos. Nesse sentido, aceitando que as línguas têm funções próprias (é com elas, por exemplo, que se dá a interação socioverbal das comunidades de falantes), e considerando que nunca se observou uma língua que, por razões imanentes, não tenha cumprido essas funções, não faz muito sentido considerar qualquer estado de língua ou aspectos de um tal estado como “patológico”, “mal-adaptado”, “desequilibrado”. Desde que todas as línguas são, por definição, normais, segue que a anormalidade é uma noção incoerente, ficando difícil sustentar empiricamente teses teleológicas, sejam elas naturalistas ou funcionalistas.).
Mas é óbvio que são incapazes de encontrar qualquer evidência da normatividade e teleologia da língua: taparam um dos olhos porque creem que só o outro lhes mostrará a verdade. Se a gramática não se subordinar à boa Filosofia e Lógica, nunca se encontrará verdades nela. A linguística faz seus adeptos calçarem certos óculos de sol que os fazem incapazes de ver o brilho radiante da estrela que é a língua, e porque seus óculos o impedem, dizem que a língua é escura e opaca como suas lentes.
De fato, a língua muda, sofre movimento. Mas todo movimento tem uma direção, um sentido, do contrário, não haveria movimento algum, porque o movimento é sair de um estado ou lugar para ir a outro. Esse estado ou lugar último, no entanto, terá de ser ou melhor ou pior para o objeto movido, porque mudanças de estado ou lugar trazem mudanças qualitativas (se eu me mudo para São Paulo, o faria porque isso me traria uma boa consequência, mas se, porém, sou obrigado a me mudar para áreas marginalizadas, isso seria para mim algo ruim). Igualmente, se a finalidade da língua é transmitir ideias segundo o tempo e o espaço de forma clara, com ordem e com facilidade, segue-se que as mudanças devem ser tomadas em relação à satisfação ou não desse fim: pode-se afastar ou se alinhar a ele.
E tanto é assim, que muitas línguas desapareceram, porque alguma outra língua se sobrepujou a ela, mas só se sobrepuja o que tem mais força, logo, a conclusão é patente.
Arte pode definir-se duplamente: ou em sentido estrito, como “recta ratio factibilium” (a reta razão das coisas factíveis), ou, em sentido mais lato, como “uma ordenação certa da razão pela qual os atos humanos alcançam por determinados meios o fim devido”. Sendo assim, entendida em sentido estrito, só é arte aquela razão mediante a qual se faz uma coisa ou se usa algum instrumento. Entendida, no entanto, em sentido amplo, pode dizer-se arte não só aquela mediante a qual se faz uma coisa ou se usa um instrumento, mas também aquelas que ordenam as outras duas ordens de atos humanos (a dos atos apetititvos e a dos intelectivos) – e neste sentido tanto a Prudência como a Lógica, a Gramática, etc., são artes.
E isto é principalmente porque a língua é sempre artificial. Ora, não nascemos com ela, senão que a aprendemos, assim como não nascemos aprendendo a usar qualquer artefato (arte-factum, feito com arte), como uma simples colher. Mas instrumentos tem, claramente, fins, porque instrumentos só o são em razão de alguma finalidade imposta pelos homens (um certo conjunto de metal, plástico ou madeira só pode ser considerado uma cadeira em razão da finalidade que lhe é imposta pelos homens), portanto, todo instrumento pode ser avaliado como bom ou ruim na medida que satisfaz seu fim (ou por acaso nunca falamos que tal cadeira é ruim por causa do desconforto ou da dor nas costas?). Mas a língua é um artefato, logo, a língua será ou boa ou ruim a depender de sua consecução na finalidade da linguagem.
VI. Mas isto é preconceituoso!
Uma última objeção que poder-se-iam nos fazer é que impor um jeito certo e outro de falar é preconceituoso, mas não creio que seja o caso.
Para mostra-lo, partirei de um caso extremo, e por meio do extremo, voltar ao nosso caso particular.
Por acaso os aliados foram preconceituosos ao, de fato, exterminar o nazismo à base da força? Por acaso não deveriam os aliados cruzar os braços e pensar “bem, é a cultura deles, não há porque eu intervir na matança de seis milhões de judeus”. Parece óbvio que não poderia ser assim.
Reduzindo e muito a escala, quando vemos alguém falando algo errado, não damos logo um tapinha nas costas do sujeito dizendo “parabéns, estás a criar uma nova língua!”, mas, no mínimo, pensamos em como poderia ser dito de uma melhor maneira, e isso sem preconceito algum, mas simplesmente por crer que isso faria bem ao sujeito em questão.
Hoje se sabe, graças a Gottlob Frege, que a Matemática é uma linguagem também, da mesma forma que o Português, o Inglês e o Espanhol. Mas nenhum professor de matemática fica calado ao ouvir um aluno dizer que 1+1 = 524, senão que o corrige, e o corrige pensando em seu bem. Mas por que o professor de português é preconceituoso ao ensinar seus alunos? Não se trata de subjugação, mas de elevação! É permitir aos alunos que falem e escrevam da mesma forma que Camões e Machado escreveram, e isto, sem dúvida alguma, lhes dará oportunidade para crescer e sair de qualquer posição de miserável que por [des]ventura se encontram.
Ademais, qualquer um que diz que corrigir é um ato preconceituoso, o faz desde cima de sua cátedra, que conseguiu porque passou em uma prova, e só passou porque soube escrever bem e soube as regras de português, mas por algum motivo, ele não quer que o pobre e o inculto tenham as mesmas oportunidades que ele. Não ensinar Gramática é subjugar o pobre.
Marcos Bagno, ao escrever seu livro sobre preconceito linguístico, por acaso escreveu da mesma maneira que falava? Parece pouco provável. Mas não estaria sendo ele preconceituoso neste mesmo ato?
A linguística é rodeada por paralaxes cognitivas e absurdos, e, ao fim e ao cabo, o ódio à gramática é uma forma de demagogia eugênica.
Saussure, F. de. Curso de Linguística Geral, p. 16. Editora cultrix.
Saussure, F. de. Curso de Linguística Geral, p. 15. X: Editora cultrix, x.
Saussure, F. de. Curso de Linguística Geral, p. 24. X: Editora cultrix, x.
St. Tomás de Aquino. Comentário ao De Anima, livro II, c. 18, 420: b. 5; b. 13; b. 27; b. 29.
Nougué, C. Suma Gramatical da Língua Portuguesa: Gramática Geral e Avançada, p. 47.
Faraco, C. A. Linguística Histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas, p. 75-90. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
Nougué, C. Da Arte do Belo, p. 275.